*DR. Parceria 7 Caníbales (www.7canibales.com)/ etaste.pt

Joan Roca reflecte sobre o futuro da indústria hotelaria, face a uma crise sem precedentes. “Voltaremos “com ganas” de fazer melhor do que nunca. O cliente será mais selectivo, sobreviverão os restaurantes repletos de verdade e com compromisso face à importância do seu lugar na sociedade”.

Alguém como Joan Roca, dispensa quaisquer apresentações. Enquanto mais de 1.7 milhões de pessoas que dedicam a sua vida ao sector hoteleiro, sustêm a respiração face a uma crise sem precedentes, procuramos respostas nos grandes “crânios” do sector. Falámos com Joan Roca sobre confinamento, criatividade empresarial, das novas prioridades dos clientes e do papel da alta cozinha numa verdadeira economia de guerra. Encontrámos uma onda de preocupação mas também muitas razões para termos esperança.

Antes de mais, como se encontra? E a sua família?

Estamos todos bem, os meus pais também estão bem. Estamos preocupados com o que se está a passar, com a urgência sanitária, com as notícias e sobretudo, com a crise económica que se avizinha. A prioridade obviamente que é a saúde, toca-nos ajudar no que pudermos, ficarmos em casa e pensarmos que quando isto tudo passar, teremos de lidar com uma nova crise económica e perceber como é que a poderemos enfrentar.

Este impasse atrai uma situação desastrosa para o sector como um todo. Como é que os Roca a encaram?

A nossa família sempre tentou ser muito prudente no que toca aos negócios, investir com os nossos próprios recursos e fazer uma reserva para um momento de emergência. Esta crise atacou-nos num momento de expansão, em que acabámos de abrir o Casa Cacao, um boutique hotel com uma fábrica de chocolate, mas felizmente esse investimento está pago. A nossa estrutura empresarial tem diferentes negócios — gelatarias, hotel, restaurante gastronómico, menus do dia, eventos — e cada um acabará por se adaptar de diferentes formas. Teremos de reorganizar as cerca de 140 pessoas que trabalham connosco para ajustar as suas funções de acordo com as novas necessidades. Tivemos de avançar para o regime de lay-off, não havia outra hipótese, mas mantivemos o pagamento dos salários integralmente, assumindo nós os custos que o Governo não assume.

Como é que imagina o dia de amanhã?

É provável que ao princípio teremos de aceitar menos clientes, não porque não haja reservas, mas sim porque as medidas de segurança sanitária exigem que um restaurante com capacidade para 50 lugares, apenas sente entre 25 a 30 pessoas. Se calhar teremos de abrir os restaurantes nos dias em que anteriormente estavam fechados e talvez esquecer as férias de Verão programadas para este ano. A nova situação, que se prevê que seja muito complexa, requer flexibilidade da parte dos empresários, dos funcionários e do Governo, que penso que terá um papel fulcral para que todas as indústrias em geral e o Turismo como sector estratégico, sigam em frente.

Fala-se muito em adoptar uma “economia de guerra”. Há espaço para um restaurante 3 estrelas numa economia de guerra?

Essa é a grande dúvida — eu não sei. Eu acredito que sim. Evidentemente que será difícil porque partimos de um cenário maravilhoso em que a cozinha espanhola mostrou ser muito atractiva para o turismo gastronómico no país. Mas teremos de nos manter sem esses visitantes externos. A nossa sobrevivência dependerá de como seremos capazes de manter uma relação com os foodies locais. No nosso caso, entre 60% e 70% dos nossos clientes já eram espanhóis e acredito que em Espanha, todos os 3 estrelas fizeram esse trabalho de conexão com os clientes locais.

O 50Best anunciou que não publicará o seu ranking em 2020, o guia Michelin está a estudar fórmulas para avançar com a edição deste ano. Será que se aproxima um terramoto no “sistema estelar” da gastronomia mundial?

Haverá um verdadeiro “baile”, porque esta crise é severa e o terramoto levará a que se adiem muitos projectos. Mas acho que afectará sobretudo modelos pouco sólidos, que existem só para competir por lugares nas listas mais importantes. Quando um restaurante está só focado em escalar posições num ranking, não pode querer ser sustentável. Isso irá ficar bem patente num novo escalão, haverá muitos negócios que não vão sobreviver.

Espera que os restaurantes tenham de passar por um crivo?

É bem possível, durante a crise de 2008 isso já aconteceu e também na crise de 1993. Mas desta vez, será um crivo dado pelo próprio cliente, que será ainda mais selectivo e somente irá a sítios que lhe transmitam confiança e com uma boa relação qualidade-preço, o que na realidade da alta-cozinha espanhola tem sido sempre exemplar. Os restaurantes que continuarão a ser destino de peregrinação, serão aqueles repletos de verdade e com pessoas verdadeiramente comprometidas com o seu papel na sociedade, e não tanto a especulação de um grupo que quer ter um restaurante na ribalta para gerar um certo modelo de negócio à sua volta.


Havia uma agenda frenética de eventos, entregas de prémios, congressos e viagens que levou um súbito travão a fundo. Acha que a roda da gastronomia estava a girar demasiado depressa?

Sim, claro. Esse crivo de que falávamos anteriormente também afectará todos os satélites que orbitam em torno da gastronomia. Mas neste novo cenário, a verdade é que todos tivemos muito tempo para reflectir, para separarmos o que é verdadeiramente importante do que não é. Regressaremos ao essencial, a dar mais valor à terra, ao agricultor, ao pescador e ao criador de gado, à cozinha com base nas suas verdadeiras raízes. Voltaremos com uma bagagem mais leve, estou certo, mas também com mais vontade de trabalhar e de fazer melhor do que nunca.

Entretanto, como está a ser o seu confinamento?

Com muita calma, paciência, filosofia, a tentar organizar o quotidiano e a manter algumas rotinas. Cozinho muitíssimo, quase que mais do que no restaurante, uma vez que tenho um mercado muito próximo de mim, mas não ando a partilhar nas redes sociais porque para mim é um momento muito íntimo. A única coisa boa que poderemos retirar disto tudo, é que as pessoas estão a voltar a cozinhar nas suas casas, a partilhar refeições em família, a tirar o pó aos livros de receitas e a tomar contacto com os produtos da estação.

Os Roca já estudam novos modelos de negócio para adaptar a sua estrutura empresarial — gelatarias, boutique hotel, uma fábrica de chocolate, um restaurante gastronómico, serviços de menus do dia, eventos — ao novo cenário de crise.

O mais complexo de todos e o que poderá oferecer mais dificuldades é o espaço de eventos. Mas veremos como será o Outono em Marrocos, já que está tudo paralisado durante a Primavera e o Verão.

A família está a planear converter temporariamente o pavilhão de eventos e os seus jardins, num restaurante “mais acessível, com cozinha tradicional catalã, provavelmente com muitos grelhados, em que o preço médio por ticket está entre o Can Roca e o Celler de Can Roca. Será isso que permitirá manter a estrutura do Mas Marroch em funcionamento enquanto se recupera o calendário de celebrações, acrescentando ao grupo um novo segmento de negócio.

Vêm tempos difíceis para o universo da Alta Cozinha, mas que ninguém pense que isso irá abafar a criatividade que sempre caracterizou a família Roca. “O Celler de Can Roca, que é a insígnia mais importante do nosso grupo e que dá sentido ao nosso compromisso com o sector da restauração, seguirá o seu caminho como até aqui, a ser um restaurante de referência onde se trabalha ao mais alto nível e com muita atenção aos pequenos produtores e fornecedores”, esclarece Joan Roca. “Mudarão coisas na nossa estrutura que permitirão apoiar ao máximo o negócio, a criatividade empresarial será importante num futuro próximo, mas nunca renunciaremos à critividade nas nossas cozinhas.”