Sempre que penso no altivo e forte Toiro Bravo de Lide gosto de pensar que nesta raça sobrevive uma réstea do Toiro primitivo selvagem que povoou a Europa há muitos séculos atrás. No meio de toda a domesticação que impusemos aos animais dando-lhes comida e segurança em troca do seu trabalho e da sua vida, resistiu este animal nervoso, irrequieto, atlético, senhor da Lezíria do Tejo. É uma espécie de ligação ao que já não existe, é como se viajasse no tempo através da história deste animal. Sinto-me próxima do toiro que inspirou mitos e crenças fazendo da sua bravura modelo que ainda sobrevive na arte rupestre. No longo percurso em que amansámos os animais valorizando aqueles que cumpriam a nossa vontade, nesta raça bovina deixámos escapar, propositadamente, a rebeldia que nos davam através da bravura.  

Mas se o Ribatejo é terra destes animais de porte altivo e pose brava, é também reino da sua contraparte, os campinos. Homens valentes que entendem e acompanham em bravura a nobreza do animal e com ele mantêm uma relação de igual para igual. O Toiro domina a lezíria e o campino domina o toiro numa relação constante de desafio e de respeito. Se por outras geografias, o animal deixou-se amansar mantendo uma relação de subserviência para com a vontade humana, pela lezíria e pela charneca o toiro manteve a sua independência na liberdade da corrida sob o olhar atento na guarda e condução do campino. Como o toiro desliza pela paisagem ribatejana como se dela fizesse parte, o campino é sombra suave que desenha o movimento que agita o tempo. Toiro Bravo e campino são pedaços iguais da mesma força, do mesmo desígnio, do mesmo destino.  

É preciso ser-se ribatejano, conhecer a lezíria e a charneca e a relação cúmplice entre toiro e campino para se poder falar destas figuras que são muito mais do que um cartaz turístico. Foi isso que senti na primeira vez que fui a Coruche e me vi no meio de uma conversa sobre esta Raça Bovina. Quem vem de fora não compreende aquilo que é natural para quem nasceu por entre histórias de valentia de campinos e gado bravo. Dos mais novos aos mais velhos, percebi bem o orgulho. Eu que nasci no Baixo Mondego, habituada à mansidão dos animais que conduziam os antigos “carros de bois” que transportavam o milho e o arroz, não percebia a força destes animais e, muito menos, sabia que os toiros bravos que via pelos campos do Mondego eram aqueles do Ribatejo. 

A verdade é que a Raça Bravo de Lide, cujo solar está no Ribatejo, tem na sua área geográfica um ponto de produção em pleno Baixo Mondego. Mas por aqui o sentir é diferente, a relação não é de desafio, de igual para igual. Por aqui cultiva-se a distância entre homens e animais. Se para os ribatejanos, a festa é brava e do comer ao falar sente-se a presença da Raça Bravo de Lide, para os Baixo-Mondeguinos são só as “vacas bravas” que, em tempos não muito longínquos, entravam pela vila adentro e obrigavam a um súbito recolher obrigatório. Depois de fechados mesmo a tempo os portões, só se ouvia o estrondo das cornadas na madeira. A estratégia era sempre a mesma, evitar olhar, provocar e muito menos irritar estes animais de nervoso fácil. Ainda assim, muitos contam histórias de como escaparam a estes animais que pelo Ribatejo são animal quase totémico.  

Não esqueço um “encontro” que tive há uns bons anos em plena planície, mal sabia eu que tinha à frente um Toiro Bravo de Lide. A minha sorte ou o meu sangue frio foi que o nervoso animal lá desistiu de investir contra mim. Hoje, que penso nisso, até sinto uma pontinha de orgulho. Naquela meia hora em que estivemos a olhar um para o outro, soube dominar o medo e soube olhar para dentro do animal. Sem saber escutei séculos de evolução de uma raça que ainda faz sentir o vento quando passa pela lezíria. Longe estava de pensar que tinha perante mim o Bravo Toiro do Ribatejo.