Estão por estudar as alteridades culinárias e gastronómicas surgidas e introduzidas nos hábitos alimentares dos portugueses em consequência da instauração da democracia em Portugal no dia 25 de Abril de 1974. Num repente de memória pensemos num comer e numa bebida hoje consensuais na sociedade portuguesa, refiro-me concretamente ao frango dito de churrasco e à Coca-Cola conhecida nos meios da oposição como água suja do Imperialismo ianque e antes desconhecida no País por ser proibida a sua venda.

Estes dois simples exemplos impensáveis no seio das camadas menores de quarenta anos ilustram de modo pujante o grau de atraso alimentar no Portugal salazarista.

As pessoas preparavam e assavam, guisavam, coziam, estufavam e fritavam frangos, frangas só em último recurso porque mais velhas punham e chocavam ovos garantindo a perenidade da raça, tratados na forma de grelhado ou cozidos ao vapor, muito raramente, e de um modo geral por quem tenha vivido em África, na Europa para além de Espanha, cariladas estavam confinadas à comunidade goesa remanescente das antigas possessões sobreviventes do antigo império cujas jóias da coroa eram Goa, Ormuz e Malaca, posteriormente Goa, Damão e Diu.

Se consultarmos o receituário do «Império» editado nos anos sessenta do século passado pela Agência Geral do Ultramar lemos várias receitas só conhecidas do Minho ao Algarve após o retorno de milhões de portugueses, os quais também são os responsáveis pelo incremento das churrasqueiras e restaurantes de comidas dos países emergentes de língua portuguesa.

Manda a verdade dizer que as centenas de milhares de soldados e marinheiros obrigados a combaterem em Angola, Guiné e Moçambique, além dos estacionados em Cabo Verde, São Tomé, Macau e Timor, todos eles contribuíram para a disseminação da herança cultural gastronómica das antigas colónias, pensemos no piripiri, na castanha de caju e nos amendoins. No capítulo das bebidas incrementaram o consumo de cerveja e das águas de vida escocesas em primeiro lugar, posteriormente irlandesas, americanas e canadianas relegando o democrático bagaço para o interior profundo e fiéis adeptos.

As referidas alteridades não ocorreram apenas no domínio das práticas culinárias, também no tocante a linguagens, normas de sociabilidade e fundamentalmente no nicho dos produtos a revolução foi e é estruturante, relativamente aos produtos a globalização e mobilidade acentuaram-nas, no capítulo das linguagens e sociabilidades mesmo os «bichos de buraco» escondidos em aldeias recônditas as receberam primeiro estranhamente, agora entranhadamente.

Os restaurantes e casas de comeres preparam e servem receitas oriundas dos países antigamente debaixo do poder do Terreiro do Paço muito para lá das inseridas no livro acima citado sendo visíveis aculturações de vária índole nos principais centros populacionais, numa miscigenação a recordar a existente em Lisboa nos finais do século XVI e início do século XVII tão bem descrita na literatura da época e glosada no Anatómico Jocoso. O célebre Mal Cozinhado camoniano poeticamente tratado pela saudosa Natália Correia é exemplo da miscigenação que desmente os fundamentalistas do racismo ao contrário.

Se 25 de Abril sempre, espero que as Edições do Gosto passada a pandemia organize suculento Congresso referente aos comeres aqui trazidos à colação sem esquecer os brasileiros. Antes pelo contrário!