A pandemia está a provocar profundas mutações nas nossas vidas, nada escapa à virulência do cujo, no domínio das restauração para lá dos enormes prejuízos económicos veio ao de cima a normalização alimentar escorada no regresso a fórmulas muito mais simples na preparação das matérias-primas e, só no restrito âmbito das embaixadas e palácios de nababos. Sim, sabemos que o elitismo culinário não desapareceu das vulgatas dos chefes, no entanto, a forçada ausência de clientes e o alto custo das preparações dos pratos a apresentar leva a confinar as representações elitistas aos nichos acima referidos. O corte é muito mais profundo (até pelas circunstâncias) do que o ocorrido na sequência do triunfo da Revolução Francesa quando centenas de cozinheiros ficaram desempregados por que os patrões ou foram guilhotinados ou emigraram desprovidos das posses de outrora.

Muitos dos cozinheiros sem trabalho estão na origem dos restaurantes (restaurar forças) génese dos actuais e do elitismo embrulhado na citada designação alta cozinha origem do nacionalismo gastronómico francês que apesar de enormes progressos das cozinhas de outros países perdura (?) apesar de a França também estar a ser duramente golpeada devido ao repelente micróbio.

Mas o que se entende por elitismo gastronómico? Distintos pensadores; Lévi-Strauss, Goody, Harris, Jean-François Revel (limito-me a nomear quatro) de uma forma mais ou menos explicita arrumam a interrogação escrevendo o óbvio: só existe comida boa e comida má. Comida bem-feita, agradável, que nos concede prazer, além disso são fantasias. E, são, porém inúmeras fantasias a que chamo delicadezas gastronómicas nasceram de um desejo do diferente, da exquisitez de uma celebridade, da extravagância de quem pode. Exemplos destas categorias enchem dicionários, o carpaccio é exemplo acabado do triunfo gastronómico da languidez da aristocrata e do talento do fatiador da carne de vitela.

O carpaccio irradiou pelas cinco partes do Mundo em numerosas versões. As subsequentes versões podem-se incluir no naipe do elitismo culinário? Deixo a interrogação. Há anos um advogado especialista em direito marítimo meteu empenhos e conseguiu lugar e almoçar ao agora encerrado restaurante de Ferran Adrià. Estávamos no auge da cozinha molecular agora no sepulcro dos modismos culinários. Perguntei ao advogado experiente gourmet qual a sua opinião sobre o degustado, ele torceu-se na cadeira do restaurante onde almoçávamos, ficou-se nos lugares comuns, acabou a lastimar a pipa de dinheiro gasto. Gostava de saber quem é o crítico capaz de explicar cabalmente a especificidade gustativa da cozinha molecular? Ora, o elitismo gastronómico insolente, analfabeto envernizado, recheado citações proselitistas passeia-se em jornais bebedores do fino em língua inglesa. Se os elitistas quiserem ensaiar técnicas sugiro a leitura do manifesto futurista do fascista Marinetti.

Os restaurantes vão afinar práticas de modo a ultrapassarem a crise. Assim o desejo!