Gostava que as palavras que escrevo tivessem o cheiro da madressilva e a funcho. E o verde das árvores que fazem sombra no caminho crescesse no branco desta folha. Era bom, talvez assim conseguissem perceber como há sítios que nos dão paz e nos ajudam a pensar no que é o corre-corre dos nossos dias. O país está em suspenso e sim, a julgar pelas restrições que se anunciam, não será fácil para todos os que viviam das imensas atividades turísticas de Verão. Não são só as oportunidades de visibilidade económica e social para os protagonistas principais, é toda uma cadeia de pessoas, fornecedores, trabalhadores, que nesta época ganhavam o conforto para as despesas do ano. É certo que não estamos em 1929 e o Estado social garante alguma tranquilidade, mas não deixará de ser um ano com muitos desafios. Não sei bem qual será a solução, pois novas oportunidades de negócios ou novas profissões exigem sempre mudanças grandes. Mas, teremos que ir ao encontro de soluções. Talvez 2020 seja mesmo ano de charneira, de passagem definitiva para o século XXI. Daqui a uns anos, ao falarmos do vinte vinte, provavelmente, vamos referir que foi o ano em que o tom de mudança foi acelerado, em que as mudanças que, eram até aqui transitórias, passaram a definitivas. Mudar não custa, mas custa o compromisso com a mudança. E esse é, neste momento, o nosso calcanhar de Aquiles. Mudar para o quê se não sei o caminho?
No entremeio destas preocupações, penso no que aprendo com os meus alunos que me trazem a memória dos avós e das suas origens. Deliro com as histórias que me contam e que me fazem acreditar que para compreender a alimentação temos de compreender as pessoas. São elas que manifestam a sua interpretação do mundo através de um simples pedaço de pão. São elas que preenchem o conteúdo místico do azeite, óleo sagrado desde a Antiguidade Clássica quando, no dia 2 de Fevereiro, frigem um coscorão ou um ovo. O comer e o sentir estão lado a lado e são expressão um do outro. A alimentação é muito mais do que se come e do que se bebe, é sempre a revelação de uma interpretação do que nos rodeia, mais distante ou mais próximo, do domínio do sagrado ou profano. É um olhar e nesse olhar estão as escolhas do que pomos dentro da panela e como apresentamos ao mundo essas escolhas. Fiquei feliz pela recolha deste provérbio muito famoso na terra quente transmontana “Trigo rolão e vinho vinagrão, trabalha tu enxadão”. Quando falava da distribuição geográfica da produção dos cereais fui surpreendida por este adágio trazido por um aluno que me mostrou que o pão de rolão, ou seja, feito com os restos dos farelos depois de peneirada a farinha de trigo, pouco valor tinha. O que significa que se era para ser pago com pão de segunda e com vinho avinagrado, mais valia não o fazer. Que trabalhasse quem queria pagar com tão fraco pagamento. E olhem que neste momento, comer pão de rolão já não era mau porque, por aquelas terras, o mais vulgar era comer o escuro, de centeio.
Não sei o futuro, sou uma aprendiza do amanhã, mas sinto muitas oportunidades num outro entendimento da gastronomia. E talvez este seja o momento para sentir essa mudança, acelerar um outro modelo. 2020 não é uma paragem ou uma interrupção, é vida todos os dias.