Se houve pena que me ficou no final do Inverno passado foi não ter conseguido ir a Penajóia por altura da floração das cerejeiras. Queria sentir o branco da flor que faz adivinhar o vermelho suculento e vibrante daqueles frutos tão apetecidos. Lembrei-me disso por estes dias quando percebi que já estamos na altura das cerejas. Pensei como foi possível estar tão ausente desse momento breve e mágico que anuncia a primavera. É claro, a espécie de mundo ao contrário que conhecemos a partir de meados de março distraiu-me do tempo. Concentrada nas estatísticas, nas medidas de prevenção, nos estudos e projeções nem me lembrei mais das cerejas. Lá estarei para o próximo ano, se tudo correr bem. Até porque quero ir a Penajóia, aquelas terras de chão xistoso e conhecer as cerejas que, dizem, ser as mais temporãs, as que mais cedo se desprendem e nos enchem a boca de sabor. Do olhar ao trincar, do escorrer ao salivar, a doçura das cerejas contrasta com o amargo das suas primas, as ginjas. Suponho eu que sejam circunstâncias de uma seleção natural da alimentação que o homem traduz na domesticação das espécies vegetais. Mas, adiante, pois que das ginjas, mais para o litoral faz-se um licor de estalo. Mas porquê esta vontade de ir a Penajóia? Quero ver essa terra de tradição antiga na produção das cerejas e quero ver os pomares, mas também as cerejeiras que se alinham na bordadura dos terrenos fazendo desenhos lindos ao crepúsculo. E quero sentir o Douro nestas cerejas de altitude, quero ver outro retrato da paisagem duriense para além daquela que nos preenche o imaginário. E, depois, falar com os de lá, ouvir contar como as variedades regionais “Braga”, “Rabicha”, “De Saco” são ali tão famosas e dão estas cerejas que demoram a trincar pela sua textura rígida e alguma acidez. Não se trata apenas de provar as cerejas ou ver as cerejeiras em flor, é querer espreitar um Douro dentro de outros tantos que o Douro tem.
Bem sei que o mundo precisa recuperar o equilíbrio e que muitos sentem o desnorte. Mas é tempo de olhar à volta e de perceber que a espécie de mundo ao contrário em que a nossa vida se transformou, lentamente, parece voltar ao sítio. Não será o que esperávamos, mas a nova realidade começa a ser a nossa e a exigir as adaptações possíveis e o realismo necessário. As dores de cada um merecem toda a atenção do mundo, mas vamos ter de viver com elas e olhar a vida para além do medo, seja este qual for. Por isso, é tempo de deixar de sentir o momento como uma interrupção, um compasso de espera entre o que passou e o que queremos que seja. Vai demorar tempo até que cada um encontre a sua solução. Mas porque a vida precisa de ser vivida, lembro o vermelho das cerejas e penso no futuro para além das certezas.
Sejam bem-vindos a um Portugal que apetece comer.