A gastronomia portuguesa é um portento. Dá gosto só de pensar no rancho de receitas, ficamos com água na boca só de falar daqueles pratos mais emblemáticos. Cada um de nós sente a comida como parte da família, um reflexo do sentir e estar do sítio onde fomos felizes. A gastronomia é feita de lembranças doces e não de amargos de boca. Para ela recolhemos nos momentos menos bons, é ela que também nos resgata da tristeza e da solidão. À mesa somos felizes, não só pelo que comemos, mas também pelo que encontramos nos outros que nos acompanham. Gosto de pensar sobre a cozinha portuguesa como um novelo que se desfia e que vai entroncando com a nossa memória, com aquilo que já vivemos e que nos marcou. Gosto muito de pensar nesse novelo que mãos laboriosas e mágicas souberam entrelaçar. Gosto mesmo. Faz-me sentir presente num tempo há muito tempo atrás. Eu, que gosto tanto de histórias, quando olho o novelo e penso nele sinto em mim uma parte de todos os povos que passaram pela nossa geografia e as geografias que trouxemos para a nossa casa com as viagens que fizemos. A firmeza e as certezas do império romano, as novidades que mudaram o nosso gosto e que nos foram generosamente oferecidas pelos árabes, os produtos da Ásia que tanto sucesso fizeram pela Europa, a América do Sul com seu paladar doce. São histórias cheias de cheiros, de sabores vindos de longe e que se encontraram aqui. E no meio de tudo isto, às vezes até me apetece rir. Tão preocupados que estamos em encontrar as regras, as linhas mestras, a ordem, nem percebemos uma coisa fundamental. A gastronomia portuguesa é feita, sobretudo, de desvios à regra. Reparem, temos a receita principal e depois cada um, cada família, cada terra tem a sua juntando mais uma pitada, roubando num qualquer ingrediente, acrescentando um outro que fica mesmo bom. E quando damos por ela… é uma receita quase nova, diferente, com outro aroma, outra cor ou sabor. O desvio à regra funcionou e uma nova receita nasceu. É por isso que quando falamos de algumas receitas, temos que dizer a receita desta ou daquela família e a receita “à moda de…”.  

Desvio de regra, a regra principal da cozinha portuguesa e porquê? Porque somos ousados, porque gostamos de pôr um bocadinho de nós na panela. Não há tratados escritos a direito ou explicações longas. É o sentir, é o viver, é o que temos, é o que sabemos. É o desvio a regra que mostra o que somos. Não no coletivo, mas na intimidade na cozinha. E aí a poesia é sempre feita de palavras soltas que na panela ganham o sentimento de quem faz. 

Desvio à regra, feliz por contar com a gastronomia portuguesa para me fazer ouvir o que os outros me querem dizer.