Em cada dia daquela espécie de mundo ao contrário que vivemos nasceu, dentro da minha cabeça, uma história feita de palavras amassadas quase sempre ao fim do dia. A partir da minha janela, nasceram palavras, às vezes fluídas e discretas, outras vezes sólidas e garridas, mas sempre tendo como horizonte os dias que estávamos a viver, felizes apesar de tudo. Nas folhas do meu diário eram palavras proibidas as que nos levavam para o cinzento dos dias e o princípio era não falar do menos bom, pois que as palavras têm força. Quase, quase no fim de um tempo de clausura, fui surpreendida pelo imprevisto e a dor fechou os meus dias mais cedo do que gostaria e limitou a minha escrita. Ainda só com uma mão, não consigo resistir e saem umas linhas mesmo à beira de um importante momento para todos nós. Amanhã, vamos continuar valentes e ousados a olhar o futuro sem ponta de dúvida do que queremos. As incertezas moram longe e o desafio faz subir a adrenalina. A pele transparece a emoção e eu lembro as palavras de todos, as iniciativas em rede, a convicção de que tudo iria passar. E agora o futuro está aí. E cada um de nós ao seu ritmo vai estar preparado. Podemos não saber como vai correr, mas temos a certeza de que o mundo quer a nossa presença, o sabor da nossa comida. O resto vai-se construindo.

Tal como aos outros a vida chama por mim e é tempo de cada um de nós seguir o seu ritmo. Apaixonada pelo meu país continuarei a ir ao encontro dos pequenos tesouros que nos encantam ao mesmo tempo que nos saciam a fome. O meu compromisso é ir atrás da cor, do som, do sabor, do falar, do cantar e entender os instantes que compõem as várias camadas do nosso gosto. O momento em que começámos a olhar o arroz como um acompanhamento perfeito, aquele em que deixámos o tomate entrar na panela, o que nos fez perceber porque o limão é um espécie de protagonista discreto da boa cozinha, o que nos disse que o marmelo poderia ser doce depois de cozinhado, o que trouxe o milho de maçaroca até ao nosso lindo Minho e o encheu de espigueiros, o que fez das várias raças bovinas uma maravilhosa expressão da paisagem, aquele que nos contou como o açúcar foi o mote de uma história doce, e o que nos deu as frutas que ninguém esperava como o melão Casca de Carvalho, essa fruta só percebida por quem vive as dores da sua produção.

Muito me espera, muito tenho para descobrir. Em cada descoberta uma emoção, o sabor será sempre o resultado desse instante em que eu me enterneço com as razões, às vezes, tão simples para aquele gosto. Guardo todos os sabores pelas pessoas que descobri com eles. A mão rodopia pelo teclado e tenta acompanhar o pensamento sempre fugidio, sempre a voar mais do que devia. Mas vale a pena expressar a paixão e o compromisso pelo gosto da nossa geografia que se multiplica em tantos gostos de tantas geografias. 

A vida chama por mim e eu, como sempre, vou atrás dela. Na minha procura, as palavras vão ter sabor a mar salgado, a planalto quente, a céu azul, a olhar amigo, a rio que flui e que atravesso com a certeza do que levo de uma margem para a outra. As palavras vão ter sabor a Portugal.   

*Este texto foi escrito dia 17 de maio, antes da reabertura dos restaurantes a 18 de maio