Recentemente, durante o Gastronomika Lives, um congresso online organizado pelo festival espanhol San Sebastian Gastronomika com o intuito de oferecer testemunhas de chefes face à situação de pandemia criada pelo novo coronavírus no mundo, Ferran Adrià inspirou muitos com as suas palavras e, no final da conversa, garantiu que iria disponibilizar de forma totalmente gratuita a versão online da sua obra ‘Qué es cocinar (What is cooking)’, lançada em 2019 e parte da coleção Bullipedia. A promessa foi comprida e dias depois, o pdf do livro já estava disponível no site do projeto, aqui.

Antes disso, em dezembro de 2019, o ETASTE teve a oportunidade de visitar Barcelona e o elBullifoundation e falou com Gabriel Bartra, diretor de conteúdos relacionados com a educação da fundação gastronómica e do centro criativo e de investigação criado por Adrià, após o encerramento do mítico restaurante, e que se divide entre dois grandes projetos: LaBulligrafia e elBulli1846.

Gabriel, que já foi cozinheiro, professor em escolas de hotelaria e jornalista na área da gastronomia explicou como são feitos os famosos livros do chefe catalão e desvendou um pouco do que acontece dentro das quatro paredes mais criativas da cidade.

Como conheceu Ferran Adrià e a elBullifoundation?

Através dos diversos encontros que organizei em várias escolas por Espanha enquanto professor na área da gastronomia. Essa altura coincidiu com o início do projeto elBullifoundation. Mas eu já conhecia o Ferrán Adrià. Ele fez uma apresentação na escola de hotelaria onde estudava, em 1996. A primeira impressão dele foi de estar na presença de um génio, alguém com uma grande visão e uma inquietude por compreender.

Quais foram os principais desafios encontrados no início da elBullifoundation?

Procurar compreender o que foi feito até então na área da restauração gastronómica do ocidente. Um dos desafios iniciais foi colocar o conhecimento em gavetas e classificá-lo. Um dos métodos que a metodologia Sapiens usa passa por classificar e ordenar para compreender. Com estes instrumentos torna-se mais fácil entenderes o que estás a fazer.

O que é ao certo a metodologia Sapiens e para que serve?

É uma metodologia de estudo para obter informações e gerar conhecimento. Essas informações e conhecimento podem ter múltiplos usos. A metodologia possui princípios que a governam e é composta por cinco métodos (definição, pesquisa e conhecimento, organização e classificação, compreensão, criação e/ou divulgação). Um dos grandes pilares de referência da metodologia Sapiens é a teoria dos sistemas ou o pensamento sistémico. Certamente que isto é algo complexo de se explicar e, por esse motivo, estamos prestes a publicar um livro que fala sobre este tema.

Essa metodologia é aplicada na Bullipedia, correto? De que forma é transformado esse conhecimento acumulado de Adrià e da sua equipa em livro? Sei que há um sobre as eras do paleolítico e neolítico, por exemplo.

Sim. Nesse primeiro fez-se uma contextualização da história da evolução do homo sapiens até aos dias de hoje, relacionado com os atos de comer e beber. Através da taxonomia, ordenamos tudo o que forma um restaurante: os processos, os recursos, os resultados, as consequências. Comparamos estes aspetos para que possamos ver a sua origem e evolução de maneira cronológica. Todo o conhecimento é arrumado e conectado.

Quantos livros foram lançados até agora e quantos mais esperam lançar?

Atualmente, temos cerca de onze livros que abordam diferentes temas mas sempre relacionados à restauração gastronómica. Temos uns mais gerais, como aqueles sobre a cozinha Nikkei, sobre café ou sobre cocktails. E depois, outros mais específicos, sobre o mundo dos vinhos (distribuídos por vários volumes), o ato de cozinhar ou as eras do paleolítico e neolítico. Todas as obras partilham o mesmo planeamento da aplicação da metodologia Sapiens em maior ou menor intensidade. É difícil dizer um número final de livros que vamos lançar porque é um trabalho que pode demorar até dez anos.

Em média, quanto tempo se demora a terminar um livro da Bullipedia?

Cerca de um ano e meio. Ultimamente, temos aprendido muito com os erros e também com as ideias que funcionam. Essa experiência permite-nos começar o trabalho a partir de diretrizes que no início não tínhamos e aplicar uma metodologia clara.

Quantas pessoas trabalham no departamento que o Gabriel gere, a dos conteúdos?

No início chegaram a trabalhar mais de 60 profissionais, entre historiadores, artistas, cientistas, nutricionistas, arquitectos, engenheiros, cozinheiros, sommeliers, entre outros. Atualmente, uma equipa de 20 pessoas é responsável pelo desenvolvimento de conteúdos para os livros Bullipedia.

Sei que aqui no elBulliFoundation têm várias peças de decoração, livros e artefactos que pertenceram ao restaurante elBulli. No futuro isto vai transformar-se em algo maior chamado LaBulligrafia, verdade?

Sim. A LaBulliografia é um dos nossos projetos e atualmente este espaço onde estamos responde ao modelo do que será, num futuro próximo, o arquivo-museu do que era o restaurante elBulli. A equipa do elBulli manteve tudo o que aconteceu e foi gerado no restaurante, guardando de forma quase premonitória todos os documentos, modelos, prémios, cadernos criativos, peças de decoração, entre outros. Todas essas peças vão estar disponíveis para serem visitadas.

Desses objetos imortalizados, qual é o seu favorito?

Sem dúvida que são os cadernos criativos onde os cozinheiros do elBulli apontavam de maneira sistemática os seus testes, ideias sobre conceitos, produtos e técnicas. As páginas estão repletas de dúvidas da altura, conceitos que foram o prelúdio de grandes técnicas e de outras que podiam ter sido e não saíram do papel. Para mim, esses cadernos são um exemplo de esforço, determinação, trabalho e inconformidade.

A abertura do laboratório de investigação ElBulli1846 é o próximo projeto da fundação. Pode falar-nos um pouco sobre as linhas que o definem?

O elBulli1846 [a abrir em breve na antiga localização do restaurante de Ferran Adrià] será um laboratório expositivo dedicado à investigação sobre a inovação tanto na restauração gastronómica como em outros setores, âmbitos e disciplinas. O restaurante elBulli criou a primeira equipa criativa de chefes, o primeiro laboratório de cozinha e gerou um diálogo com outras áreas. No elBulli1846 haverá equipas multidisciplinares dedicadas a pesquisar o conceito de restaurante gastronómico de maneira global. Através da metodologia Sapiens, analisaremos não só a cozinha mas também o serviço ao cliente, a experiência num restaurante, entre muitas outras coisas.

Na sua opinião, qual será a próxima revolução do setor?

O conhecimento. E a partir da elBullifoundation acreditamos que devemos compreender aquilo que fazemos para continuarmos a ter liberdade para criar e inovar.

Logo à entrada deste edíficio que nos encontramos há uma frase interessante e já conhecida do Ferran Adrià: “Cerramos elBulli para abrir elBulli”. O que isto quer dizer efetivamente?

Que o elBulli foi muito mais do que aquele restaurante localizado em Cala Montjoi. Após o seu encerramento, em 2011, os valores, a inquietude e a essência do restaurante estão conservados na elBulliFoundation. Assim como a preservação do seu legado. Acredito que a fundação é a transformação do restaurante.

*A jornalista viajou a Barcelona e visitou a elBulliFoundation a convite da Alimentaria Barcelona