É incógnito se alguém, alguma vez, se dedicou a pensar sobre a correlação do sucesso (ou insucesso) dos negócios de restauração levados a cabo por casais. Talvez no final deste texto possamos juntar umas linhas sobre o assunto e endereçar uma carta ao Instituto Nacional de Estatística. Decerto que nos iriam agradecer. Ainda antes disso, queremos dar a conhecer alguns dos rostos da gastronomia em Portugal, que por acaso, partilham uma relação afetiva e, para algumas delas, a coisa corre tão bem que além de fazerem o IRS juntos, até são responsáveis por negócios, em conjunto. Os primeiros convidados são Justa e José Nobre, casados há mais de 40 anos e proprietários de três restaurantes na capital.
Não é preciso estar com os dois pouco mais de cinco minutos, na mesma sala, para perceber a dinâmica deste casal: divertido quanto baste. A história entre os dois é muita. E é fácil grande parte dela perder-se pelo meio. Já lá vão 42 anos de casamento, um filho e três netos. Quando se pensa em casais da gastronomia, não é difícil chegar aos nomes Justa e José Nobre, com 60 e 64 anos, respetivamente. O casal é proprietário dos restaurantes O Nobre e À Justa e já anda na hotelaria quase há tanto tempo quanto o seu casamento dura. Ela é chefe de cozinha e ele chefe de sala. No início, nem tudo foi fácil para este casal que nada tinha a ver com a hotelaria, quando se viram metidos na área. Quando pedido para falarem sobre a sua história, Justa, sempre despachada, apressa-se a contar como tudo começou. São linhas que já conhece de cor. José (ou Zé, como lhe chama) está sentado logo ali, bem perto. Este que às tantas se vai atrevendo a interromper a mulher e a garantir que tudo é dito de forma correcta. “Espera lá”, diz enquanto Justa vira o rosto na sua direção.“Estás a passar acontecimentos à frente. Se quiseres contar, conta as coisas bem!”. Imediatamente, Justa responde: “A Catarina não quer saber tudo!”. “O meu marido gosta de ir aos pormenores”, diz com um tom de quem já está mais do que habituada a estas coisas.
Após presenciar algumas trocas (hilariantes) de galhardetes entre os dois, vamos lá reformular a história segundo a visão de ambos. No ano em que Portugal conquistou a liberdade, 1974, Justa e José conheceram-se. Ainda que tenha sido pela segunda ou terceira vez, dizem. Aos 15 anos de Justa, já tinham trocado olhares, em Lisboa. “Ficou o sex appeal”, brinca José. A chefe de cozinha logo apressa-se a rematar: “Só se ficou contigo, comigo não”. Após anos de ausência voltaram a cruzar-se quando ela tinha quase 18 anos. Saído do serviço militar, José apressou-se a pedir a futura mulher em casamento. Eles que eram oriundos de realidades diferentes, ela de uma família alargada de irmãos em Macedo de Cavaleiros, Bragança e ele de Abrantes, no Ribatejo. A vida de casados começou de forma regrada e “com pouco dinheiro”. Justa nunca foi alheia aos tachos e ao gosto pela cozinha, que se manifestou desde cedo. José, por sua vez, sempre se sentiu bem na arte de bem servir, gosto que foi adquirindo através de pequenos trabalhos em restaurantes. Os dois complementam-se até nisso: ela é quem cozinha nos raros dias em que comem em casa. Ele aprecia, apenas. “Não sei estrelar um ovo”, confessa o chefe de sala, entre risos.
Prosseguindo. Na altura, o chefe da empresa onde José Nobre trabalhava, sabendo dos dotes do casal, convida-os a abrir um restaurante, o 33, onde José acabou por consolidar a sua arte. “Se o copo de água não estivesse em linha com a faca de carne, o meu patrão advertia-nos logo que a mesa estava mal posta”, recorda. No serviço de sala de hoje em dia, a coisa é diferente e segundo Nobre, pior na qualidade. “O serviço de antes era mais requintado”. E Justa, que tinha 21 anos na altura, concorda e acrescenta: “Hoje há muita gente que apenas passeia pratos”. Entretanto, oito anos passaram a correr e o casal foi ganhando amor pela arte da restauração. As oportunidades iam surgindo, e o jovem casal apressava-se a abrir restaurantes, primeiro o Iate Ben, em Carcavelos, e pouco depois, o Constituinte, em 1988 . Na altura, nascia o único filho, Filipe. No início foi complicado conjugar essa responsabilidade com a do restaurante mas tudo se conseguiu “com a ajuda de empregadas e babystitter”. “Trabalhávamos os dois as mesmas horas mas o Filipe criou-se e hoje gere o À Justa, o nosso mais recente projeto”.
Pouco tempo depois conseguiram abrir o primeiro negócio a solo, O Nobre em 1990, na Ajuda. Já na altura, ambos acusavam a particularidade de trabalhar em casal e em família, já que desde o primeiro momento, as irmãs de Justa estão presentes no negócio. “Às vezes vale tudo, menos tirar os olhos. Há muita confiança, dizemos tudo: o que se deve e o que não se deve”, explica. No entanto, esse trabalho conjunto, ambos veem como positivo. “Deixa-nos mais seguros. Com o Zé, eu sei o que ele quer na sala e ele sabe o que eu quero na cozinha. Há entendimento no que queremos dar ao cliente”. Parte envolvente do sucesso é a criatividade que é partilhada pelos dois protagonistas. “Não podes cozinhar o mesmo bacalhau a vida toda. Nós mudamos constantemente os pratos. E eu fico doente quando não temos coisas novas para recomendar aos clientes”, explica José. “Parte da evolução é continuar a trabalhar e a criar e a Justa é, por exemplo, muito boa a criar pratos com peixe”. “É verdade. Adoro”, confirma Justa. “Neste negócio, nunca nos devemos sentir realizados com o que temos e nós já temos o respeito do meio. No entanto, vamos querer sempre mais”, explica a chefe. “Procuramos sempre ser melhores que ontem”, completa José.
Após o fecho do primeiro O Nobre, em 1998 – que voltaria a abrir na margem sul, no Montijo, e mais tarde, em Lisboa, com um segundo espaço, no Estoril – “aliciaram-nos a ir para a Expo, para inaugurar meia dúzia de espaços com o nosso nome, mas as coisas não correram bem. Foi uma estupidez”, recorda Justa. Estes erros fazem parte do percurso e o casal coloca em perspetiva, durante a conversa, as diferenças na gestão que fazem agora de um restaurante. “Às vezes é difícil deixar as coisas à porta de casa”, revela Justa. No entanto, há sobretudo que manter a calma, confiar no trabalho um do outro e manter a concordância nas decisões. Ambos aplaudem a audácia de cada vez mais jovens cozinheiros (alguns deles, casais!) de abrir interessantes conceitos em Lisboa, uma cidade “que está na moda”, confirma José. A cozinha em Portugal evoluiu e os cozinheiros já “têm orgulho em mostrar as suas raízes e em utilizar produtos portugueses”, refere Justa. E nos seus restaurantes, parte do sucesso, dizem, é ter sempre “matéria-prima de qualidade e um bom serviço”.
Hoje em dia, o casal gere três restaurantes e consegue deixar a chefia, de pelo menos dois deles, nas mãos de gente em quem confiam. Quando estão de folga, jantam com os netos e fazem em casa “um linguado ou uma pescada no forno” ou mandam vir um frango da churrasqueira. Quando sozinhos, é mais provável encontrá-los por aí, em restaurantes “do mais tradicional ao fine dining”. Na maior parte dos dias, estão no Nobre do Campo Pequeno, de manhã à noite – e sempre juntos. E a receber clientes que cresceram com eles. E os filhos e os netos deles. E talvez esse seja o segredo que ambos não queiram confessar para o sucesso. Afinal, como Justa revela, e bem, “se os conselhos fossem bons, ninguém dava, vendia. Por isso, só digo: Esta profissão é igual a tantas outras, tão ou mais complicadas em termos de horários, mas se se gostar, corre tudo bem! O importante é aprender com os erros”. E o casal Nobre bem aprendeu.