O rio já ali e a terra aqui. Ambos cenário de uma matéria, por vezes visível. Belém é o ponto de partida para a viagem que se segue. O outro lado da margem é o destino do carro que vai partir. O motivo é a procura, o conhecimento do produto e seus produtores para a 3ª. edição dos jantares Matéria. Esta é uma iniciativa pensada por João Rodrigues, chefe do restaurante Feitoria, do Altis Belém Hotel & Spa, com o propósito de juntar o triângulo “produtos, produto e chefe” e colocá-los no prato, num jantar inédito.

“Estão prontas?, pergunta-nos António Gonçalves, uma das caras por trás do restaurante G, em Bragança. Além de “bom amigo” do chefe João Rodrigues, vai trabalhar diretamente com ele na próxima edição dos jantares Matéria. Nesta iniciativa, João convida um colega de profissão internacional, no caso o sueco August Lill, (e outro regional, cuja escolha recaiu no chefe Luís Barradas, do restaurante Zagaia, em Setúbal) e leva-o a conhecer as gentes que fazem o caminho do Feitoria. A experiência passou por conhecer os produtos do mar e depois os da terra. “Esta é uma oportunidade de os produtores mostrarem a sua paixão e o que fazem no seu dia-a-dia. Para quem vem, é a oportunidade para assistir a uma realidade não construída, verdadeira”, explica.

A par dos chefes, dos jornalistas presentes e de alguns membros da equipa do Feitoria, também Pedro Cardoso, proprietário d’A Queijaria, em Lisboa, pica o ponto junto aos carros. O destino é a Fábrica de Queijo Artesanal Victor Fernandes, em Palmela, Setúbal. A empresa, no ativo desde 1988, produz queijo de ovelha fresco e curado, e ainda requeijão e manteiga. “O leite vem todos os dias de manhã. Parte dele de algum gado que temos aqui perto”, diz Rúben Fernandes, filho do proprietário. O processo de transformação normalmente demora duas dezenas de dias e só sai para o consumidor com um mínimo de 22 dias. Rúben mostra-nos os queijos finalizados e explica que alguns deles não saem “tão amanteigados” e ficam a descansar para “maturar e evoluir”.

A meio do dia, e já com o estômago forrado, é tempo de visitar a Quinta do Poial, tão falada entre os chefes portugueses. Quem nos recebe é Joana Macedo Sarrazy, herdeira do legado da mãe, Maria José Macedo, uma das pioneiras da agricultura biológica em Portugal, ainda nos anos 90. O cheiro a natureza sente-se no ar. De sorriso contagiante, Joana recebe-nos de maçã na mão. “Provem. Chama-se Porta da Loja e é do norte”. “Esta não conheço”, responde quase imediatamente João. Filha de pai francês, viveu em Paris durante vários anos. Em 2016 regressou para comandar o negócio que tanto ama. August Lill vai ouvindo atentamente Joana, sempre seguido pela mulher de origem francesa, Jessica. “As frutas e os vegetais têm nomes tão diferentes dependente dos sítios onde vais”, diz o sueco que mais tarde confessa-nos adorar trabalhar com vegetais. Em Portugal tinha estado apenas uma vez, no Porto. Estar em Lisboa, e com o chefe do Feitoria, é nas suas palavras, uma experiência “incrível”. É disto precisamente que este cozinheiro ‘freelancer’ gosta: “chegar a um país, conhecer os produtos e trabalhá-los”. O chefe viveu muitos anos no sul de França e em Paris e, por isso, é influenciado por essas técnicas. Frenchie, Roseval e La Gazzetta são alguns dos restaurantes por onde passou. “Tenho a mente aberta quando vou a lugares novos, como uma esponja”. O tempo mostrou-se curto para tantas visitas mas o final deste dia ainda ficaria marcado pela prova dos vinhos Horácio Simões, harmonizados mais tarde, com os pratos dos chefes no jantar.

No dia anterior, conta-nos João, o mesmo grupo de convidados tinha estado no Mercado do Livramento, em Setúbal, com Luís Barradas. “A qualidade e variedade do peixe era excecional”, comenta o chefe internacional convidado. E depois, mais tarde, juntaram-se a Célia Rodrigues, para visitar a sua produção de ostras de Aquacultura, no estuário do rio Sado.

A visão deles

No início de 2017, o chefe do Feitoria criou o menu Matéria, no qual implica o conceito inerente a estes jantares, que tiveram início em outubro deste ano. James Lowe e Florent Laden foram os primeiros convidados. August Lill seguiu-se no desafio. João conheceu-o este verão, no Almeni, um festival de gastronomia, organizado por Massimo Bottura, em Itália. Fizeram um jantar juntos e não demorou muito até se tornarem amigos. O convite para participar nesta ideia surgiu de forma casual e descontraída. Depois da escolha dos chefes, João limitou-se a selecionar algumas regiões do país e depois alocar alguns produtores “emblemáticos”, com os quais o Feitoria já trabalha.

Antes dos convidados chegarem a Portugal, há uma conversa prévia com João, em que se estabelecem algumas ideias para o menu que pode chegar aos dez pratos. O mais interessante, revela o chefe do Feitoria, é quando os convidados chegam, provam “os nossos produtos” e mudam o que querem fazer por inteiro. “O August adorou as castanhas assadas que preparámos no jantar do primeiro dia e o topinambur da Quinta do Poial e quer usar as duas coisas”. O menu é feito praticamente no dia em que é servido. O objetivo é que o chefe convidado desenhe a sua visão dos produtos portugueses. Os benefícios de ter no restaurante alguém de fora são muitos, tanto para a equipa, como para o próprio, garante. “Aumentas o teu dicionário de sabores, absorves uma nova filosofia e uma nova maneira de olhar para o produto”.

Já a terminar a série de quatro jantares Matéria – o último é em janeiro com um chefe que admira e segue há muito tempo – João Rodrigues faz um balanço muito positivo. “Percebe-se que vamos conquistando algo. Nem que seja a proximidade entre as pessoas que estão no projeto”. Quando cá chegam, os convidados têm acesso a uma visão verdadeira das relações. “Há uma cumplicidade e amizade entre nós e os produtores” e isso reflete-se mais tarde, nos jantares do evento. Antes disso, nos momentos de convívio, quando se juntam todos numa mesa a comer e beber, “cruza-se a informação e realmente passa-se algo de especial”.

Matéria no prato e na rede

O mais interessante de acompanhar os chefes nestas visitas aos produtores é depois ver essas suas idealizações e trocas de ideias nos pratos. Ao longo do menu apresentado, é evidente, primeiro que tudo, o peixe e o marisco. Não fosse a região selecionada ser a de Setúbal. Salmonete, robalo, carabineiro são alguns dos exemplos dos produtos apresentados. À semelhança do que acontece nos jantares diários no Feitoria, Rodrigues, acompanhado por Barradas, traz à mesa o peixe inteiro, neste caso o robalo, e mostra o produto real aos clientes e convidados. Deste último, ouvimos: “Para saberem se o peixe está fresco basta repararem nas guelras vermelhas, no cheiro a mar e nesta cor brilhante”. O peixe serviria para o prato acompanhado de couves, cenouras e caldo de peixe fumado de Lill.

E falando no homem de Setúbal, com forte influência asiática, brindou-nos com duas criações, ao apresentar primeiro um sashimi de salmonete. E depois nos doces, a pera cozida em moscatel com gelado de leite de ovelha, trazido da Fábrica de Queijo Artesanal Victor Fernandes. A juntar, nesta sobremesa, a bolacha da Piedade, uma especialidade da terra.

Também as ostras, ali servidas por João apresentam-se junto a um arroz de salicórnia queimada, algas e yuzu. O arroz no prato tem a ver com o facto de na propriedade de Célia, ter existido uma produção desse cereal. É também este o chefe responsável por um xerém com carabineiro, papada de porco e rabanetes, bem como, pelo único prato de carne da noite, presa de porco alentejano grelhada, lingueirão e amido de batata.

Da Suécia, August trouxe umas bagas preservadas (mirtilos) e emulsionou-as em sangue de porco, depois juntou a gelatina e o açúcar. Por cima, serviu umas castanhas lascadas, como de trufas se tratassem. A influência do Poial sente-se mais uma vez num outro prato em que colocou beterrabas – de várias cores – e junta-as com raiz forte, bagas de sabugueiro e marugem.

Esta matéria em prato é parte do projeto que João Rodrigues apresentou no último Congresso dos Cozinheiros, em novembro. Era uma ideia guardada na sua mente, sobre a qual falava a tanta gente há tantos anos. Decidiu então preparar o site ‘Matéria’, em que pretende fazer uma base de dados de produtores portugueses. “Se não tomarmos iniciativa, ninguém o vai fazer por nós, porque não o sentem da mesma forma”. Este é um projeto que quer iniciar mas diz pertencer a todos. “Estou a pôr um tijolo para depois colocarem outros por cima e construirmos a casa”. O chefe do Feitoria quer incentivar que mais colegas seus visitem o terreno e conheçam as pessoas por trás dos produtos. “Temos muito para aprender. Cada produto é um mundo”. E poderá esta ferramenta fomentar a união entre os chefes portugueses? “Pode ajudar”. No entanto, esclarece: “Ela já existe. Há uma geração que pensa da mesma forma” e isso é positivo.

Os chefes em ação. Foto: Fabrice Demoulin