Em Portugal, 50 mil refeições acabam diariamente no lixo dos restaurantes. E em cada casa, 20% do que se deita fora é comida. Com esta consciência, a Assembleia da República declarou 2016 como o ano do combate ao desperdício alimentar. Mas já antes, o país tinha dado passos nesse sentido com o projeto ReFood, lançado em março de 2011 e que desde então tem vindo a somar galardões; ou com a iniciativa Fruta Feia, que ganhou em 2013 o 2.º prémio do concurso ‘FAZ – Ideias de Origem Portuguesa’ promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian; e mais recentemente com o supermercado Good After, que vende produtos perto do fim do prazo de validade. Ainda assim só em Portugal é desperdiçado um milhão de toneladas de alimentos por ano – 17% do que é produzido pelo país – de acordo com as conclusões do PERDA (um projeto do Centro de Estudos e Estratégias para a Sustentabilidade sobre o desperdício alimentar em Portugal, que conta com a participação de investigadores de diversas universidades portuguesas).

Nas contas mundiais feitas pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), o atual desperdício alimentar nos países industrializados ascende a 1,3 mil milhões de toneladas por ano, suficientes para alimentar as cerca de 925 milhões de pessoas que todos os dias passam fome. Por isso, quando o chefe Massimo Bottura, do Osteria Francescana, em Itália – recentemente considerado o melhor restaurante do mundo pela lista 50 Best Restaurants – instala no Rio de Janeiro o seu Refettorio Rio Gastronomotiva,  para servir cerca de 19 mil refeições nas quais recupera cerca de 12 toneladas de comida que, de outra forma, ia para o lixo, a acção ganha protagonismo mundial. Ao seu lado conta com convidados de renome como Albert Adria, Alain Ducasse, Virgilio Martinez, Mitsuharu Tsumura e Joan Roca. Mas a iniciativa não é nova. No âmbito da Expo Milão 2014, o chefe italiano já tinha apresentado o Reffettorio Ambrosiano com o objetivo de combater o desperdício alimentar e a fome no mundo, um projeto que continua a dar cartas não só em Itália como também no estrangeiro.

Talvez inspirados por esta vontade de mudar o mundo, no ano passado, Mario Batali, Dominique Crenn, Daniel Humm e (novamente) Alain Ducasse, num grupo que envolveu mais de 20 chefes, rumaram ao restaurante Blue Hill, em Greenwich Village (Nova Iorque) para, durante três semanas, prepararem pratos recorrendo à reutilização de produtos ou subprodutos não utilizados. A ideia adoptou o nome de wastED e pretendeu lançar uma pedrada no charco no que diz respeito ao desperdício alimentar. Resultado? Os nova-iorquinos fizeram fila para provar a ementa, que tinha um custo de 13,50€ por pessoa.

Retirando da equação o fato dos chefes serem conhecidos (e premiados) – o que resulta sempre para chamar a atenção da máquina mediática – outros (totalmente desconhecidos) já tinham começado a dar passos neste sentido. O pioneiro nestas andanças parece ter sido o restaurante Rub & Stub, que abriu em 2013, em Copenhaga, e alega ter sido o primeiro a elaborar menus com comida que sobrava. À sua volta  reúne agricultores, cooperativas e lojas locais, que lhe fornecem desde alimentos com tamanhos, formas e cores pouco aptas para serem comercializados, a comida em vésperas de atingir o fim do prazo de validade. O que lhe faz falta, é comprado. O menu completo fica à volta dos 25 euros por pessoa. E clientes não faltam.

A norte de Paris, em La Villettte, o Freegan Pony apresenta desde 2015 a mesma proposta. Os produtos são provenientes do mercado abastecedor de Rungis e a diferença para o seu congénere dinamarquês é que aqui cada um paga o que quer. Na vizinha Grã Bretanha, o Real Junk Food Project subscreve a mesma carta de princípios e o sucesso foi tanto que, não só já tem uma rede de restaurantes pelo país, como abriu até uma sucursal em Berlim e outra em Scoresby, na Austrália. O mesmo êxito teve o holandês Instock que inaugurou também um espaço em Haia e outro em Amesterdão. A sua filosofia é simples: os chefes criam menus com produtos que de outra forma iam para o lixo. Estes alimentos – frutas, verduras e pão, sobretudo – são recolhidos junto de parceiros – restaurantes, lojas, agricultores – num carro elétrico (dentro da filosofia da sustentabilidade), sendo depois transformados em “comida deliciosa. Preferimos ‘reciclar’ a deitar fora”, afirmam os fundadores, um grupo de jovens que trabalhava num supermercado quando se deu conta da enorme quantidade de alimentos que era desperdiçada.

Ao mesmo tempo que estes negócios prosperam, a tecnologia acompanha-os. O aplicativo Too Good To Go mostra as refeições que sobraram em vários restaurantes e que podem ser compradas por preços que nem chegam aos 2,50€. Fundada na Dinamarca em 2015, a empresa está atualmente centrada no mercado britânico, onde já opera em Brighton e Leeds, e rapidamente chegará a Birmingham, Londres e Manchester. O modo de conseguir uma destas refeições é simples, basta descarregar a aplicação, ver os restaurantes por perto e quais os pratos que estão disponíveis (ou por outras palavras, que sobraram), encomendar e passar pelo local escolhido para levantar o pedido. Não há menus definidos, o que há é um tupperware para encher com o que sobrou. Trata-se de uma forma dos restaurantes não perderem dinheiro com refeições que iriam parar ao lixo, reduzir o desperdício alimentar e disponibilizar comida que está apta para ser consumida. Aparentemente todos ganham.

Chefes portugueses e sobras: um menu apetecível?

“Quando chegamos a um certo nível gastronómico muitas vezes é-nos muito difícil não olhar às imperfeições de certos alimentos, porque queremos que tenham uma certa forma, um tamanho diferente ou até porque queremos apenas uma parte de um determinado produto. O importante é de seguida ter a criatividade para reutilizar os desperdícios”, afirma Pedro Almeida, do restaurante Midori, na Penha Longa.

O chefe reconhece que já tentou fazer menus com sobras mas que a “aceitação não foi a melhor pelos clientes”. “A palavra ‘sobras’ é de alguma forma forte”, justifica Bruno Rocha, chefe do Bairro Alto Hotel. Ainda assim, Pedro Almeida não desiste. Os legumes e o peixe, os dois produtos que mais ficam por utilizar no Midori, acabam em saladas ao estilo japonês ou em escabeches, já para não falar que muitas vezes “chegam à mesa do staff do restaurante”. Um hábito que já se tornou banal também noutros espaços.

Milton Anes, do Arola, que vê grandes quantidades de batatas sobrarem, “devido a forma que lhes damos”, resolve este ‘problema’ “na panela da sopa do pessoal ou mesmo naqueles guisados estranhos em que a batata apresenta formas mais desconhecidas”. Mas o chefe leva esta questão ainda mais longe. Na sua cozinha há uma caixa a que chama ‘de desperdício’ onde estão alimentos que servem para caldos, que “acabam em conservas, em fermentações de meses que são óptimas para a saúde – como os pickles ou o kimchi caseiro – ou em doces com teores de açúcar reduzidos”. E acrescenta: “Cozinhar com sobras torna-se sem dúvida um grande desafio, sendo que a nível profissional é cada vez mais necessário por uma questão de bom senso e brio. Em casa não existe espaço para comermos apenas aquilo de que gostamos, da maneira como gostamos, quando queremos. Para mim  o maior dos desafios passa por nos colocarmos no lugar dos produtores e de quem paga pela matéria prima, isto para não falar de quem passa fome”. Do mesmo princípio parte Bruno Rocha, chefe do Bairro Alto Hotel, para quem, o desperdício alimentar além de ser um flagelo mundial é também um prego na gestão eficiente da receita. “Os alimentos têm de ser respeitados, são fruto de um longo percurso e de esforço humano até chegar ao consumidor final”.

E assumir um ‘Reffettorio’ ao estilo de Bottura? “Estas iniciativas meramente pontuais são válidas para criar ‘awareness’ na sociedade mas é na gestão do dia a dia que eficientemente trabalhamos para a erradicação deste problema. Só o faria com a condição bem patente, de não existir, qualquer fim lucrativo para os intervenientes e com a garantia que a qualidade dos produtos e a experiência dos clientes não fosse de nenhuma forma afectada”, adianta Bruno Rocha. Milton Anes é mais peremptório: “claro que sim, quanto mais não seja, seria a maneira ideal para valorizarmos o que há, e não o que me apetece cozinhar ou comer”.