Aos 30 anos, Américo dos Santos carrega ao peito, orgulhosamente, o símbolo do Belcanto, em Lisboa, e a responsabilidade de representar o restaurante de José Avillez na sua oferta mais doce.

RESPOSTAS RÁPIDAS:

Sobremesa preferida: Leite creme e rabanadas. “O leite creme como em vários sítios, não tenho um local de eleição. Já relativamente às rabanadas, gosto muito das que o restaurante Roda da Lage, em Santa Maria da Feira, serve.”
Ingrediente preferido: Canela e frutos de caroço. “A canela pelo cheiro, sabor e por fazer parte da minha memória de infância e os frutos de caroço por serem doces, aromáticos e conterem um nível de acidez.”
Onde comer bons doces: Alcoa, em Lisboa. “As cornucopias de doce de ovos são muito boas.”
Uma técnica de pastelaria: Doce de ovos. “Apenas leva três ingredientes: água, açúcar e gemas de ovos. Basicamente gira tudo à volta da temperatura da calda de açúcar e depois da cozedura da gema que tem de ser a certa. Porque se não for, podes acabar por fazer uns ovos mexidos doces.”

Uma das primeiras memórias que tem na cozinha é de ajudar a tia a fazer um bolo de canela, um dos seus ingredientes favoritos. Mas foi mais tarde, por volta dos 14 anos, que a decisão de ir para a Escola de Hotelaria de Santa Maria da Feira acabou por formalizar aquilo que até então era apenas uma curiosidade. Apesar de a cozinha ainda ter sido uma miragem, seria mesmo a pastelaria a sua grande aposta: porque, afinal de contas, no campo dos doces tudo corria sempre melhor. “Fazia mais rapidamente uma massa do que um guisado. Acho que foi aí que despertou o clique”, começa por contar Américo dos Santos. Após o normal percurso escolar e alguns estágios iniciais, o pasteleiro somou uma primeira experiência profissional a norte, de onde é oriundo, no Quartentae4, em Matosinhos. Ficou por lá seis anos —  durante esse período foi ainda chefe consultor no Paparico, no Porto — antes de decidir que era altura de se aventurar em voos mais altos. Nesse caminho surgiu a oportunidade de estagiar no Belcanto, em Lisboa, e depois o convite para ficar como chefe de pastelaria no restaurante de José Avillez. Essa alteração de vida e de objetivos virou a sua vida do avesso. “Surpreendeu-me logo o método de organização e o ritmo de trabalho que tinham. Nunca tinha visto nada daquilo antes. Confesso que me causou algum desgaste inicial psicológico e físico”, relembra. Após esse primeiro impacto, o pasteleiro confessa ter-se habituado rápido ao ritmo que o restaurante exigia: o Belcanto era um “comboio já em andamento. Tinha de correr para apanhá-lo”, justifica.

Américo apanhou o comboio, é certo, mas não se deixou ficar numa só carruagem, aproveitando  para, durante as férias, aprender mais em estágios de curta duração nos famosos El Celler de Can Roca, em Espanha e Mirazur, em França. Afinal, o pasteleiro queria provar a si mesmo e aos outros que era capaz de lidar com tamanha responsabilidade. À medida que o tempo foi passando, foi conquistando o seu lugar, recusando sempre qualquer tipo de estagnação. “Até uma determinada altura da nossa vida, tentamos fazer o que os outros fazem. É muito difícil alguém com 24 ou 25 anos conseguir criar um prato com pés e cabeça — não tem experiência e base suficientes. É preciso ver, estudar e provar muito, e isso requer tempo”, acredita.

O choco e o carabineiro

O que fazemos no Belcanto é a continuação da nossa história e isso também se aplica às sobremesas. Cerca de 80% a 85% dos produtos que trabalhamos vêm de Portugal, é a nossa base de cozinha”, começa por explicar Américo. Segundo o pasteleiro, o receituário luso está recheado de doces que não são assim tão evidentes mas que fazem sentido, como o caso do Pudim Abade de Priscos que leva toucinho na sua confeção. Não é por acaso que essa sobremesa faz parte do ‘Menu dos Clássicos’ do restaurante, onde é servida com torresmos, wasabi e sorvete de framboesa. Foi seguindo essa lógica que o chefe pasteleiro apresentou no festival Peixe em Lisboa a sobremesa ‘Choco, chocolate e tinta de choco’, uma criação que tem como base o prato de chocos grelhados com tinta. A ideia, conta, surgiu da palavra (choco)late. “Não há que ter regras na criatividade”, ressalva. Américo conta que foram precisos vários testes até chegar ao ponto perfeito desse prato em particular  — os mesmos que por estes dias tem feito para uma outra sobremesa que está a desenvolver, esta à base de carabineiros. O pasteleiro acredita que esse é, aliás, o processo normal de qualquer criação. “É preciso testar e provar muitas vezes.” E depois, claro, contextualizar o prato para que faça sentido no seu todo. “Tenho de pensar que aquele prato faz parte de um menu de degustação. Não faz sentido eu depois estar a servir algo pesado”, justifica. É claro que isto não quer dizer que o açúcar seja um elemento proibido até porque esse é um elemento essencial nas sobremesas. “Faz sentido ter. A sobremesa é um momento de conforto. Mas hoje em dia podes fazer qualquer coisa com menos quantidade de açúcar. Um creme de ovos, por exemplo, não tem que ter o mesmo nível de doce daquele feito há 100 anos. Até porque na altura funcionava mais em jeito de conservação do produto.”

A sobremesa ‘Choco, chocolate e tinta de choco’. Foto: Boa Onda/Grupo José Avillez

O longo caminho da pastelaria em Portugal

Américo dos Santos mostra-se satisfeito com a evolução sentida nos últimos anos no setor. No entanto, garante ainda haver muito trabalho pela frente. “A mudança demora tempo, é difícil mudar o chip. É complicado chegar perto de alguém que foi habituado a trabalhar margarina por trinta anos e dizer que tem de parar de o fazer por esta ou aquela razão”, começa por dizer. “Há dez anos, quando disse aos meus pais que ia ser pasteleiro eles pensavam que ia fazer croissants a vida toda”, afirma, recordando que até há bem pouco tempo “só os hotéis é que tinham pasteleiros”.

É certo que há cada vez mais colegas a fazer “trabalhos muito interessantes” mas a formação especializada continua a ser um problema. “As coisas estão num bom caminho mas tem de existir mais investimento. Agora já temos pessoas mais capacitadas a saírem das escolas. E oxalá que daqui a mais cinco, possamos ter mais.” Parte dessa evolução passa pelos próprios profissionais conseguirem ganhar o seu espaço. “Os pasteleiros têm de sair um bocadinho da sombra dos cozinheiros. São duas profissões diferentes mas que acabam por estar ligadas. Trabalhamos em conjunto.”

Segundo Américo, à semelhança da recente revolução no setor da padaria em Portugal — com o nascimento de múltiplos espaços liderados por pessoas “que sabem o que estão a fazer” — o mesmo deveria acontecer na pastelaria. “No pão, foram precisos um ou dois pioneiros para andar com isso. Por isso, temos todos nós, pasteleiros, de andar um bocadinho mais para que isto mude, continuando a trabalhar e a formar pessoas para que estas saibam o que fazer e como fazer.”

Foto: Humberto Mouco