O homem outrora fascinado pelo lado cinematográfico da vida, encontrou o verdadeiro encanto da profissão por entre as folhas finas de um croissant francês – uma das suas massas favoritas de trabalhar, e claro está, comer. Esta é a doce vida de Filipe Manhita, pasteleiro da Fortaleza do Guincho.
RESPOSTAS RÁPIDAS:
Sobremesa preferida: Leite creme. “O que faço é o meu preferido.”
Ingrediente preferido: Lima ou coco. “Sou fanático por esses sabores tropicais e frescos.”
Onde comer bons doces: No restaurante A Escola (perto da Comporta). “Eles têm uma sobremesa que estranhei ao início mas que agora adoro. É um doce feito à base de ovo, triturado com pinhão e natas. Antes de servirem ao cliente, deitam um pouco de sumo de limão por cima.”
Uma técnica de pastelaria: Massa de croissant francês. “Basicamente é pegar numa base de massa (farinha, fermento, água, açúcar, sal) e incorporar manteiga. Depois aplicar o sistema de voltas – semelhante ao que se faz com a massa folhada. E, finalmente, levar ao forno. A principal diferença entre esta massa e a folhada é que esta leva fermento. Ou seja, cresce. Fica com uma massa fofa e crocante. Para mim é das com melhor textura. Não é fácil produzir uma boa massa de forma consistente – é um mundo fascinante.”
“Ao acaso.” É como Filipe Manhita, de 34 anos, descreve a sua entrada de mansinho no mundo da pastelaria. A casualidade tornou-se certa, depois de tentar uma carreira no mundo do cinema – outra das suas paixões. Durante a formação, fascinou-o logo “a técnica, o método e o lado estético” da arte que viria a chamar de sua. A nível profissional, viria a pôr as mãos na massa no seu primeiro estágio na Bica do Sapato, em Lisboa. “Comecei por trabalhar em cozinha mas entretanto estavam a precisar de uma pessoa para pastelaria e eu disse que me responsabilizava”, recorda. Por lá ficou uns meses até ir a convite do chefe da altura para o Grande Real Villa Itália Hotel & Spa, em Cascais, onde durante quatro anos foi subchefe de pastelaria. Por essa altura, em meados de 2010, conhece Joaquim de Sousa, uma inspiração e uma forte influência no seu caminho profissional, que o acaba por convidar para integrar a sua equipa, no The Oitavos – onde permaneceu cinco anos. “A minha evolução aconteceu a partir do momento em que comecei a trabalhar com ele. Foi a minha grande formação.” Filipe conta que era comum Joaquim desafiar a equipa a preparar novas sobremesas, todos os dias, para espoletar o lado criativo de cada um. Foi numa dessas ocasiões que surgiu a famosa Flor Negra – feita à base de ginja, chocolate e nata, que desabrochava, como uma autêntica flor (de chocolate) à medida que o caldo era introduzido no prato – e que, pelo seu aparato, rapidamente se tornou viral na internet. A sobremesa acabaria por ser reproduzida no MasterChef Austrália pelos respetivos concorrentes e o nome de Joaquim de Sousa foi falado nos quatro cantos do mundo. “Era comum partilharmos vídeos do que fazíamos na internet. Quando publicámos esse trabalho não esperávamos aquele boom todo. Mas penso que foi uma ótima projeção para a pastelaria portuguesa.”
Ares do Guincho
“Não se pode dizer que tenha um estilo definido. Mas gosto muito da pastelaria francesa, por exemplo. A questão é que temos sempre que nos adaptar ao restaurante onde estamos”, explica Manhita que em 2015 é convidado a chefiar a pastelaria do hotel e restaurante Fortaleza do Guincho. Na altura, Miguel Rocha Vieira substituía Vincent Farges nos comandos da cozinha e, com ele, iniciava-se uma nova era. O que não mudava era a continuação da ênfase ao produto português. “Tudo o que trabalhamos tem origem em Portugal, apesar de por vezes, poder ser trabalhado consoante uma técnica estrangeira. Para nós, não faz sentido ir buscar um produto de origem internacional só por ser estranho.” A serra de Sintra, ali perto, é por isso um “jardim” que o pasteleiro e a equipa visitam regularmente para “colher ervas ou flores” para depois “fazer infusões”. Para o pasteleiro é importante perceber o produto num todo para poder trabalhá-lo da melhor forma.
Os ares e os mares do Guincho fornecem inspiração à cozinha para muitas das suas criações. Na pastelaria, essas também servem de estímulo sensorial, assim como os que da terra nascem. Não estranhe, por isso, encontrar nas sobremesas alguns elementos normalmente utilizados na parte salgada – a denominada cozinha doce, uma tendência que segundo o pasteleiro “já não é assim tão tendência”. Haverá então espaço para ingredientes mais fora num menu de um restaurante como este? Claro. Mas o conforto também é importante. “Não posso ter só criações mais fora. Os clientes vêm à procura do doce. Eu próprio, enquanto cliente num restaurante, vou preferir uma opção mais doce em detrimento de outra menos”, explica. Ainda assim, no restaurante, Filipe tenta que as suas sobremesas sejam o mais “equilibradas” possível quanto aos níveis de açúcar dizem respeito. Essa é aliás uma tendência que o pasteleiro defende, até porque grande parte dos portugueses estão habituados a ingerir grandes quantidades de açúcar nas sobremesas de origem mais conventual. “São a nossa base e o significado de tradição e cultura. Mas temos de adaptar aos tempos em que vivemos”, explica. Essa adaptação passa, por exemplo, por tentar aproveitar os açúcar de outros tipo de produtos (casos daqueles naturais retirados da fruta) de maneira a conseguir “resultados muito próximos” do açúcar. Essa temática é também trabalhada nas aulas na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, onde o pasteleiro faz várias experiências e tenta mostrar alternativas diferentes aos futuros profissionais da área.
“É um processo de reeducação do paladar. Se começares a reduzir no açúcar, as pessoas vão-se começar a habituar”. O desafio é, mesmo depois disso, que o cliente acabe uma experiência gastronómica “com vontade de comer mais uma colher.” Na opinião de Filipe, as sobremesas desempenham um papel importante numa refeição, pois “se acabares a comer um doce que não gostas, a coisa fica logo meio arruinada.”
Pasteleiro, um outro papel
O primeiro sinal da (r)evolução foram as capas de revista francesas, já a dar destaque a outro tipo de protagonistas. E, com isso, a gerar novas tendências. A profissão de pasteleiro sofreu uma evolução significativa no mundo e, em Portugal, também é notória essa mudança. “Hoje em dia, o pasteleiro já não é uma personagem escondida na cozinha. Já é independente”, considera Filipe. Isto porque há uma crescente aposta na restauração em “pessoas especializadas” porque se percebe que apresentam “melhores resultados”. Segundo Filipe, um cozinheiro pode perfeitamente fazer boas e deliciosas sobremesas, no entanto vai sempre faltar-lhe “know how para ir mais além”.
Abrir um restaurante apenas de sobremesas em Portugal não seria de todo uma má ideia, muito pelo contrário. “Fazia todo o sentido mas tinha que ser no sítio certo que captasse bastante público”, afirma. No entanto, esse é ainda um caminho que considera arriscado e para o qual o publico luso poderá ainda não estar preparado. “Geralmente não vais a um restaurante pelas sobremesas. Se bem que no The Oitavos havia quem fosse por isso. Mas é pouco comum.”
A mesma lógica se aplicaria a um bom conceito de pastelaria no país. “Teria de ser algo bem pensado. As pessoas não comem sobremesas a meio do dia mas comem gelados, por exemplo. Tinha de seguir essa linha.” É por isso que Filipe aplaude projetos como o de Francisco Siopa – o atual pasteleiro do Penha Longa Resort que Manhita substituiu na Fortaleza do Guincho – com a sua loja de bombons, em Cascais (entretanto fechada) que apresentava uma oferta distinta do mercado. “A pastelaria de rua que existe em Portugal não dá palco a quem a faz. O Siopa, com a sua loja, conseguiu destacar a figura do chefe pasteleiro.” Parte dessa evolução, é também a crescente oferta a nível de feiras e mercados especializados, “com propostas diferentes”. Agora o caminho é continuar a arriscar e apresentar conceitos distintos para continuar a evoluir.