Vivem na sombra dos cozinheiros: em termos de reconhecimento público, os pasteleiros ainda lutam por um lugar ao sol. Mas nesta nova rubrica, o ETASTE coloca-os no centro do palco, de frente para a luz. Sara Soares, do Penha Longa Resort, é a primeira protagonista da La Dolce Vita.

RESPOSTAS RÁPIDAS:

Sobremesa preferida: Pudim Abade de Priscos. “O meu preferido é feito por um portuense, no restaurante Manuel do Norte, em Vilamoura, no Algarve”.
Ingrediente preferido: Hibisco. “Ando com um fetiche por essa flor”.
Onde comer bons doces: “Aqui, no hotel Penha Longa”.
Uma técnica de pastelaria: Curd. “Atualmente temos uma sobremesa no Lab em que utilizamos essa técnica e que se chama Laranja Sanguínea. Basicamente consiste em extrair a polpa do cítrico escolhido e juntar-lhe claras de ovo e açúcar. (O uso das claras, em vez das tradicionais gemas, resulta num creme bem mais forte a nível de sabor e acidez). Depois é levar ao lume (82º) e mexer com o salazar. Já fora do lume, basta adicionar manteiga em cubos e emulsionar com varinha para criar o creme. A sobremesa é completada por um gelado do citrino, esponja de pistácio e chocolate golden em várias texturas”.

Em vez de estudar os decretos-lei e de saber de cor as alíneas do Diário da República, Sara Soares preferia testar as formas redondas de um macaron para, mais tarde, dar a provar aos colegas, nos intervalos das aulas do curso de Direito. Do conforto da sua cozinha passou para outras de grandes dimensões, por todo o país, da Madeira, no Belmond Reid’s Palace, ao Alentejo, na Herdade do Esporão, passando pelo The Oitavos, em Cascais. Hoje, aos 30 anos, é a responsável pelas sobremesas dos restaurantes do hotel Penha Longa Resort, em Sintra, onde se inclui o estrela Michelin LAB by Sergi Arola.

Ninguém da família estava ligado à pastelaria ou sequer à hotelaria. Foi por isso com surpresa que os pais de Sara receberam as boas novas. Ou velhas. Porque o gosto esteve sempre lá. “A pastelaria desafiava-me e eu gostava disso. Além de que rimava com a minha personalidade, mais metódica e organizada. Conseguia ser criativa”, começa por explicar. Depois de três anos intensos no anterior curso, encontrou verdade no de Produção Alimentar e Restauração. As bases ali aprendidas apenas lhe deram asas para arriscar. Pois só assim, na sua opinião, é possível criar. No seu caso, o local onde trabalha é o seu primeiro ponto de inspiração. “Obriga-me a estar mais atenta aos ciclos dos produtos. Tenho sempre na ideia ir buscar coisas diferentes dos básicos, como o chocolate ou o caramelo.” Quando trabalhou no Esporão, na equipa de Pedro Pena Bastos, era frequente apanhar certos produtos na natureza. Apesar de estar mais perto da grande cidade, garante agora repetir tudo o que aprendeu nos prados de Sintra. “Vou frequentemente colher coisas à volta do hotel e trago para toda a equipa de cozinha utilizar.”

Quando pensa nos espaços e nas pessoas que a marcaram ao longo do percurso é inevitável vir ao cimo o nome do pasteleiro Joaquim de Sousa. “Ele é um clássico que consegue ser sempre inovador”, considera. Também o recente e curto estágio no El Celler de Can Roca, em Girona, Espanha, acredita ter sido uma experiência muito especial. A maquinaria presente na cozinha dos irmãos Roca é “incrível”. Em especial, a de extração de aromas – algo que considera ser uma tendência. “Eles têm uma sobremesa que cheira e sabe a livro velho. É a cozinha de memória que tanto defendem.” A pasteleira confessa que adoraria mexer com “essas conjugações” mas sabe que nem sempre há condições para trabalhar como esse tipo de materiais. “Eles têm uma equipa de laboratório cujas funções passam por pesquisar, analisar e testar. É outro mundo”, comenta.

A sobremesa Laranja Sanguínea, uma criação de Sara para o LAB. Foto: Luís Ferraz

A sobremesa Laranja Sanguínea, uma criação de Sara para o LAB. Foto: Luís Ferraz

Fora do comum

Chocolate, miso, caramelo, malte de cevada, baunilha e caril. Para Sara não existem barreiras. “A cozinha e a pastelaria devem estar ligadas.” Afinal, “um restaurante para ter um nível mais elevado tem de levar a sério as suas sobremesas.” E transportar ingredientes que sempre foram mais ligados à cozinha para a pastelaria não é, de todo, uma ideia descabida. “Sempre gostei de combinar sabores diferentes. O meu intuito é sempre surpreender o cliente”, afirma. No entanto, Sara ressalva que apesar de se arriscar em contrastes menos óbvios, é da opinião de que deve haver um balanço. Nos sete restaurantes que tem à sua responsabilidade, como braço direito de Francisco Siopa, o chefe executivo de pastelaria, há espaço para coisas mais fora da caixa, como a sobremesa de miso, funcho e avelã, de que o chefe Sergi Arola, responsável pelo LAB, é fã assumido. Mas também não há que fugir aos sabores mais confortáveis e clássicos, como o soufflé de baunilha, presente igualmente na carta. Mas afinal, o que é uma sobremesa? “É o momento que mais anseio numa refeição e, também, o mais feliz”, diz entre risos. “Não acredito em sobremesas que não sejam doces, têm de ter pelo menos um elemento. Depois há espaço para outros mais salgados e ácidos. O palato deve ser desafiado sempre.”

Ao LAB chegou em dezembro de 2017. Apesar do curto tempo, conquistou a confiança de Siopa para chefiar a equipa de pastelaria dos restaurantes, constituída por mais três pasteleiras – “todas incríveis”, comenta orgulhosa. Pela primeira vez à frente de uma equipa, Sara delega tarefas pelas colegas e desdobra-se nos serviços dos vários restaurantes. O seu dia a dia passa por controlar a mise en place e ver se está tudo funcional em cada posto. De manhã, normalmente, ativa a sua veia criativa. As suas ideias são depois discutidas com os respetivos chefes de cozinha. “Eles têm de se identificar e aprovar. É normal, dão a cara pelo restaurante”. É, por isso, “essencial” que haja uma linha entre a parte doce e a mais salgada. Por exemplo, se a cozinha usar determinado ingrediente no prato antes de uma pré-sobremesa, Sara sabe que não convém repetir esse elemento.

Neste momento, o seu foco são os restaurantes Midori e LAB by Sergi Arola, com os quais assume querer ganhar uma estrela Michelin. No caso, uma primeira para aquele de influência japonesa, chefiada por Pedro Almeida, e uma segunda para o de Arola, que tem Vladimir Veiga como chefe de cozinha.

Para alguém já com alguma experiência, valerá a pena falar num estilo de pastelaria próprio? Para Sara Soares, nem por isso. As suas bases de técnicas francesas e de doçaria conventual portuguesa, aprendidas na escola e reforçadas nos sítios por onde passou são importantes mas não a definem. “O meu estilo é um ‘melting pot’. É uma junção de várias coisas e das inspirações dos locais onde trabalhei”, justifica. Como tem de lidar com diversos conceitos, do italiano ao japonês, a confusão pode surgir mas a pasteleira tenta gerir o melhor que consegue a situação. E o espaço para a criatividade é grande. “Não tenho bem uma limitação de produtos. O LAB, por exemplo, é identificado como sendo uma cozinha do mundo. Já fiz para lá uma sobremesa em forma de nigiri. Não há limites.”

Foto: Humberto Mouco

Doce em demasia

Foquemo-nos no mítico Pudim Abade de Priscos. Além de uma grande quantidade de toucinho, também o caramelo, o açúcar e os ovos são elementos indispensáveis desta sobremesa conventual, com origem em Braga. Há quem ache demasiado doce, mas é precisamente esse o elemento preferido de Sara. E, no geral, as sobremesas que encontra nos típicos restaurantes portugueses têm esse ponto em comum. Mas há outros piores. “Grande parte das pessoas não tem noções de pastelaria. Não trabalham bem os produtos e não têm respeito pela sazonalidade. Não faz sentido estares em dezembro e colocares morangos numa sobremesa, por exemplo”, explica.

Apesar de muitas sobremesas ainda serem confecionadas por cozinheiros, Sara espera que a situação sofra transformações no futuro próximo. Quando começou, há dez anos, a pastelaria vivia na sombra da cozinha, algo que tem vindo a mudar. “Espero que ganhe o lugar que merece. Nenhum restaurante vive só da cozinha.”

E que tal aplicar em Portugal um restaurante só de sobremesas, como o Room 4 Dessert, em Bali ou Espaisucre, em Barcelona? Segundo a pasteleira, não seria de todo despropositada, pois somos um povo “bem guloso”. “Se calhar fazia sentido um espaço desses. Talvez assim a pastelaria se conseguisse evidenciar mais. Mas é um risco”.

Nos últimos tempos, a profissão tem vindo a ser mais reconhecida. No entanto, a pasteleira relembra que ainda existem “profissionais incríveis que não são conhecidos do grande público”. Lamenta também que não existam competições, distinções e plataformas suficientes de pastelaria em Portugal. Segundo a própria, estas poderiam servir de motivação. “Como há o Chefe Cozinheiro do Ano, também poderia haver o Pasteleiro do Ano.” No entanto, o futuro da profissão passa pelos próprios profissionais continuarem a “lutar pelos seus direitos”. É importante, por isso, também que haja gente bem formada para “marcar pegada como fazem os cozinheiros”.