Não sendo chefe sem ou com toque, não sendo especialista em artes culinárias, muito menos perito em gestão hoteleira ou de restauração, orgulho-me de na condição de apreciador de comeres escorados em bons produtos e cozinhados a preceito – com conta, peso e medida – dedicar tempo e fazenda a estudar as mutações na e da cozinha nas suas múltiplas vertentes desde as bem sustentadas até às tão excêntricas, tão estapafúrdias que não acredito nas mesmas como o malogrado Santi Santamaria não acreditava na denominada cozinha científica. O cozinheiro catalão esteve no Festival Nacional de Gastronomia e, penitencio-me, por não ter gravado as suas palavras respeitantes ao tema: a gastronomia.
O surto pandémico para lá do cortejo de vítimas, no tocante ao acto de comer fora do ambiente familiar trouxe importantes transformações a todos os níveis em geral, e nos restaurantes e casas de comer em particular. O futuro do universo culinário implica ou toca no da convivialidade à mesa das refeições, porque essa mesa é sinónimo de civilização.
Da expansividade teatral (até excessiva) do tomar «o caldo» e comer o pão amassado com o suor do rosto, passando por milhares de gerações a acabar na referida exuberância gestual e gutural nos restaurantes, os convívios deram azo a códigos de maneiras, linguagens eivadas de vocábulos saídos dos fogões e tachos, numa constante aprendizagem ora em risco de ser submersa na voragem das regras sanitárias.
A máscara de disfarce passou a filtro de segurança, escondendo expressividades denunciadoras de alegria, tristeza, amor, ódio e tutti-quanti em matéria de emoções. Pode-se argumentar que não comemos com a máscara colocada na boca. É verdade. Só que todo o conjunto de operações retira espontaneidade e franqueza possibilitando o escamotear de sinceridades, mesmo de halitoses a carecerem de salsa moída utilizada no passado pelas meninas casadoiras. Numa celebrada telenovela brasileira uma personagem era o Bafo de Onça.
Se no espaço à volta da mesa vamos dedicar tempo às máscaras, aos seus contornos estéticos e coreográficos nas salas dos restaurantes estaremos debaixo de colectiva suspeição, imagino zangas, recriminações, redobrados afastamentos, esgares de nojo, palavras sibilinas e grosseiras porque diz a mãe à filha: não fiques aí porque na mesa ao lado está um velho. Diz o neto à avó: não me beijes, temos de estar longe um do outro. E, por aí fora…
A suspeição cresce como o arroz no momento de ser cozinhado, não por acaso os normativos apontam cotas de pessoas para este ou para aquele acontecimento. Os restaurantes vão acolher centenas de clientes ao mesmo tempo. Como? Sim, há o controlo de temperaturas, o gel, no entanto os convidados vindos de ali e acolá, mesmo conhecendo-se de Conrado guardam prudente afastamento cumprimentando-se de longe. A transgressão das regras já originou contaminações, sofrimento e morte. Apesar de terem acontecido há pouco tempo pergunto: lembram-se?
Convenções, congressos, e demais actividades do género e respectivos banquetes aumentam as inquietações dos profissionais da hotelaria e restauração, consequentemente os custos a pagar as cautelas, muito boa gente já se desprendeu de almoçar e jantar por causa das sociabilidades e, volto a perguntar: os badalados especialistas estão em condições de apresentar modos de solucionar este tipo de problemas sem custos exorbitantes?
Como muitos leitores sabem os críticos elaboram grelhas de apreciação, há grelhas para todos os gostos, no Mundo ocidental na generalidade afinam pela mesma diapasão, porém as mesmas terão de incluir as novas realidades, dispenso-me de as enumerar, os especialistas o farão, mas por favor não copiem. Sejam inovadores. Londres voltou aos tempos da pérfida Albion, Nova Iorque vive tempos aflitivos e os restaurantes estudam e testam modelos de protecção do pessoal e uso de atoalhados de tecido ou de outros materiais absolutamente seguros.
A peste desencadeou uma enorme tormenta no universo da gastronomia, voltarei ao tema. Os leitores amantes da Nona Arte façam o favor de pensar no futuro das Confrarias gastronómicas. O das Academias afigura-se-me mais risonho.