“O homem piedoso e o ateu falam sempre de religião; um, fala dizendo que ama, o outro dizendo que teme”
Charles Montesquieu
O consolo da religião
O Homem primitivo, forte ou fraco fisicamente, era frágil, extremamente débil no despojamento da caverna sombria e com a perspectiva provável de não sobreviver às catástrofes e ataques dos animais ferozes procurava na Divindade como o primeiro princípio de auxílio e salvação, como fonte inesgotável e total, como potência absoluta. Uma religião de salvação personificada no gnosticismo dependente do conhecimento, dir-se-á muitos séculos mais tarde.
O Homem amedrontado, temoroso, desconhecedor da causa dos cataclismos de vária ordem criou mitos divinizando-os na esperança de o auxiliarem nos momentos de aflição e infortúnio. Por isso o Homem concebeu cosmogonias como “realidade imaginária, indistinta, donde tudo brota: deuses, coisas, homens”. Nas cosmogonias da Acádia e da Babilónia, o mito de Tiamat e Apsu, divindades aquáticas que “figuram a primeira determinação do caos e que, unindo-se, farão aparecer tudo o mais”. Esta concepção do cosmos passa à Grécia. Para Homero, autor de duas obras fundamentais da civilização Ocidental, a Odisseia e a Ilíada, o Mundo formou-se a partir da “conjunção do Oceano e Tétis” como se pode ler na Ilíada, já Hesíodo entende que o início foi «Cháos» a Fenda sem fundo.
A mitologia é de enorme variedade, formas e complexidade, congregando variadíssimos segmentos do devir dos povos do Ocidente e do Oriente.
Agora, nestes dias ligeiros do dizer, a torto, e a direito, a propósito de rotineiros acontecimentos ou de grande relevância na organização das sociedades empregamos o termo – mito – sem cerimónias, sem dar por isso trazemos à ribalta nomes de figuras mitológicas, apenas saliento três, pois no emaranhado da Mitologia aparecem milhares de personagens, amáveis, bondosas, ciumentas, cruéis, traiçoeiras, violentas, à imagem dos seus criadores.
Trago a terreiro Apolo, filho de Zeus e Latona, Hades, senhor do mundo dos mortos, Ícaro que não resistiu à tentação de na fuga do labirinto não resistiu à tentação de se aproximar do Sol, tendo os seus raios derretido as asas de cera e sepultado o jovem nas águas azuis cobalto no denominado mar de Ícaro, que banha ilhas gregas. Estas figuras só por si são acicate para o leitor se aventurar a estudar a Mitologia superficialmente abordada neste texto.
Desde há século e meio a religião autonomizou-se da filosofia, não sem custo, os eruditos e os filólogos tinham temor à possibilidade da introdução da Ciência das Religiões conduzir a generalizações aproveitadas pelos charlatães amadores, as Igrejas receavam os resvalamento dos fiéis nas malhas do cepticismo, e no encolher de ombros dos indiferentes.
Uma coisa é certa, a cadeira de Ciência das Religiões, paulatinamente, foi acolhida nas Universidades de maior prestígio, beneficiando do apoio das contínuas descobertas da arqueologia, dos progressos nas investigações filológicas, históricas e linguísticas, dos avanços na compreensão da etnografia, da mitologia, do folclore. A Ciência das Religiões investiga e estuda afincadamente a desmesura dos materiais colocados à sua disposição a originarem a gigantesca tarefa de separar o trigo do joio, na hierarquização dos objectivos do estudo das religiões, da sua natureza, das suas manifestações. Os especialistas dividem a ciência em filosofia das religiões e história das religiões. Naturalmente, estas duas partes estão umbilicalmente ligadas, a filosofia falharia ao ficar-se por formulação abstrata do conceito de religião dispensando os dados concretos revelados pela história. A história precisa da filosofia de modo a conceber uma ideia da religião, ainda que volátil, não só para escolher e classificar os fenómenos religiosos, também para os reconhecer.
A Ciência das Religiões, além de dedicar atenção às religiões pré-históricas, fundamentalmente, ocupa-se do estudo das religiões da Humanidade civilizada, daí estabelecer classificações, apesar da extrema dificuldade de tal tarefa.
O que é essencial e acessório na classificação das religiões? O filósofo Hegel salientando as asperezas de uma qualquer classificação, neste parâmetro estabelece as regras a seguir. Adverte que não se deve entender, diz ele, a classificação somente no sentido subjectivo, “é no sentido objectivo a análise necessária da natureza do espírito, ela fixa os pontos principais que marcam, ao mesmo tempo as fases do desenvolvimento da ideia e das da história.” Desta maneira o filósofo autor da A Razão na História explicita duas coisas; na medida que a classificação dá a dilucidação da ideia, “expõe a essência da religião na sua unidade, na sua multiplicidade; mas, por outro lado as secções da classificação são dogmas da classificação histórica.”
O eminente cientista das religiões M. MÜller não gostava das classificações morfológicas dado não serem objectivas e escorarem-se em apreciações pessoais. Ele baniu sem margem para delongas as classificação de uso corrente; divisão entre religiões verdadeiras e religiões falsas, religiões naturais e religiões reveladas, religiões populares e em religiões de fundadores. Religiões monoteístas e religiões politeístas. Esta enunciação, simples, desprovida de consequente rasoiro explicativo, tem a finalidade de entusiasmar o leitor a prosseguir leituras sobre sistemas religiosos, os quais quer se goste ou não, têm profunda influência na Humanidade.
Todos conhecemos sarcasmos, ironias e sentenças a ridicularizarem ou condenarem as religiões. Dizer delas serem a alienação das sociedades, serem o ópio do povo, todas serem falsas e nefastas ouve-se da boca de pessoas sérias e cultas, piadas grosseiras de bocas incultas, são respondidas e combatidas dentro da mesma bitola. Em todo o caso, também a história regista milhares e milhares de textos condenatórios dos dogmas da religião e das abomináveis práticas de castigo dos protestantes seja no seu seio, seja no âmago das sociedades. Um longo cortejo composto de blasfemos, apóstatas, de iconoclastas, livres-pensadores, racionalistas, acabaram na fogueira e ao cadafalso homens, mulheres e crianças cujo único pecado foi o de terem nascido fora do tempo, no lugar errado, numa sociedade totalitária, sombria e circular.
Apesar das imprecisões e defeitos vale a pena perguntar: o que seria o Mundo sem religiões. A resposta é rápida: a não existência de religiões aumentaria o sofrimento dos homens, a sua dignidade receberia ofensas maiores e humilhantes do que recebe agora, o Planeta estaria à beira do caos. Talvez se possa escrever: para benefício dos não crentes as religiões morigeram costumes, refreiam paixões, impõem regras de conduta até de ordem dietética, os jejuns o comprovam.
As religiões exercem fecundo papel no auxílio e defesa dos oprimidos, humilhados e ofendidos, dos sem eira, nem beira, dos apátridas na sua própria Pátria. Toda esta gente encontra consolo na Religião. Por seu turno o Homem religioso, probo, amigo de amar o próximo como a ele próprio, capaz do amor fraterno, estoico, aceitando o Mundo tal qual é em si, repudiando a teoria do super-homem e o amoralismo nietzschiano. O Homem religioso encontra consolo na Religião. Isso lhe basta.
Texto original publicado na INTER 258.
*o autor não escreve ao abrigo do acordo ortográfico