O jovem cozinheiro português fala dos primeiros tempos no laboratório de fermentação do restaurante de René Redzepi, dos preparativos da equipa para o livro ‘The Noma Guide to Fermentation’ e do início da época de caça.
Os primeiros problemas de fim de época dos vegetais começam a aparecer com a queda gradual na qualidade das ervilhas que recebíamos. Uma tarefa que se fazia em 45 minutos passou a demorar duas horas — tornou-se necessário abrir muito mais vagens para obter as mesmas quantidades com a qualidade de outrora.
Os novos estagiários tinham chegado no início dessa semana e olhavam para nós com espanto quando lhes explicávamos que tínhamos de separar as ervilhas por 3 tamanhos e provar uma ervilha de cada vagem, para assegurar a respectiva qualidade. O prato acabou por ser retirado do menu nessa mesma semana e reposto por outro de milho jovem. Como este, outros ingredientes e preparações foram alteradas durante a época, para garantir sempre a melhor qualidade e experiência para o cliente.
Durante esta altura andei entre a produção, a fazer mise-en-place, e a “correr” de estação em estação durante o serviço, a preparar, empratar e servir vários dos pratos do menu. Consegui, desta forma, acompanhar muito do produto recebido até à altura e de o servir ao cliente, vendo toda a sua elaboração e preparação.
Certo dia, um dos sub-chefes chamou-me para conversar em privado e, após alguns momentos, perguntou-me: “Gostavas de fazer parte da equipa do Laboratório de Fermentação?” Foi com certo espanto que reagi à questão — é muito raro algum estagiário ser colocado no laboratório. Claro que disse imediatamente que sim.
Fui quase de imediato encaminhado para o laboratório e cinco minutos depois estava a ser recebido pelo David Zilber, responsável pelo I+D e Fermentação, que me fez uma pequena tour e explicou as características de cada espaço e para que serviam. Este laboratório é composto por quatro salas com temperatura e humidade controladas, quatro câmaras de fermentação com temperaturas entre os 60ºC e os 21ºC destinadas a diferentes tipos de fermentados que se fazem no Noma, entre os quais se destacam os mais comuns como o garum, miso, lacto-fermentados, vinagre e kombucha. Na zona principal do laboratório o espaço divide-se entre uma cozinha totalmente funcional e uma área recheada de equipamento tecnológico — centrifugadora, rotovap, emulsionador por ultrassom ou ainda um extrator de fluidos supercríticos.
Era o pico alto da época da preservação, uma das alturas mais trabalhosas e com mais carga horária no “Fermentation Lab”. Nesta altura tivemos tarefas como conservar 6.500 alcachofras perfeitamente torneadas em óleo de rosas – feito através de extração por dióxido de carbono no extrator de fluídos supercríticos, preservar uma tonelada métrica de cogumelos, desmanchar 350 esquilos, fazer 120 litros de garum de esquilo e ainda mais de 400 litros de vinagre de abóbora.
No entanto, e no meio de tanto trabalho, foi nesta altura que pude conviver mais com David Zilber e compreender todo o funcionamento, quer do processo criativo, quer do desenvolvimento de produto dentro do laboratório. Perceber a diferença entre fazer um garum a 30ºC ou a 60ºC, como isso altera o perfil de sabor ou a decomposição dos açúcares, amidos e gorduras. Aprender como evolui um miso, e como os diferentes cereais utilizados e a frescura dos ingredientes alteram o resultado final. Os diversos tipos de Aspergillus utilizados para a produção de Koji, as suas utilizações e o sabor que desenvolvem. Mas o mais importante foi, sem dúvida alguma, a constante procura por evoluir, novas técnicas, novos produtos e a atitude formativa e informativa adotada tanto por David como por Jason White (assistente de David, um especialista com uma respeitada carreira nos EUA).
Cheguei ainda ao laboratório numa altura de muita correria e preparação para o lançamento do novo livro da série “Foundations of Flavor” intitulado “The Noma Guide to Fermentation”, que saiu no dia 16 de outubro. É uma das nossas bases de I+D no laboratório e o nosso maior aliado no dia-a-dia quando precisamos de alguma receita ou alguma inspiração. A maior parte das dúvidas e questões que tinha quando entrei no “Fermentation Lab” estão respondidas no livro. E sim, as receitas são todas reais e exatamente as que usamos no Noma sem tirar nem pôr uma vírgula.
A meio de setembro, e curiosamente no fim do meu primeiro mês no “Fermentation Lab”, David Zilber perguntou-me diretamente “Gostava que ficasses aqui até ao fim do teu estágio, queres?” Sou vos sincero, é óbvio que queria lá ficar, se havia lugar onde poderia continuar a aprender e a crescer enquanto cozinheiro era ali e não hesitei um segundo a dizer que sim.
Com o final da época dos vegetais, veio um pequeno intervalo de três semanas. Durante este período os chefes de partida, sub-chefes e o chefe de cozinha tiveram direito a duas semanas de férias excluindo, como seria de esperar, a equipa da cozinha de testes, laboratório e a produção. Durante esta semana entraram pela cozinha milhares de cogumelos, milhares de litros de óleo, centenas de patos, centenas de corações de rena, centenas de quilos de marmelos. Os números neste restaurante são completamente alucinantes e acho que no resumo que aqui vos faço isso evidenciou-se, e bem! Alucinante também foi ver o culminar do processo de criação de pratos como o cérebro de pato que se come com o osso da língua do mesmo, a tarte de cérebro de rena, a asa de pato que se come diretamente da asa (e onde as penas continuam numa das extremidades) ou as molejas com musgo. É um menu de verdadeira floresta e caça, onde se celebram o pato e a rena na sua totalidade, respeitando-os, dando-lhes um aproveitamento integral. Mal posso esperar por provar o menu completo. E já não falta assim tanto.