O cozinheiro português relata as vivência dos seus primeiros meses enquanto estagiário do Noma. O início e o fim da época dos vegetais do restaurante, a vida na Dinamarca e as conversas com René Redzepi sobre andebol.

“Este foi o maior desafio da minha carreira.” Esta foi uma das muitas frases de René Redzepi que podia ter escolhido do briefing antes do primeiro serviço da época dos vegetais no renovado Noma — o sentimento que essa frase transmitia estava em cada um de nós, nas nossas barrigas, nas nossas caras e na nossa cabeça a cada movimento.

O ambiente durante toda a semana foi de nervosismo, com trabalho redobrado: uma equipa com mais de 50 cozinheiros a trabalhar a todo o vapor durante mais de 12 horas diárias sendo que em cinco dias apenas iria existir um serviço. Desde caldos de cogumelos, groselhas e alga Kelp, a óleos de flor de sabugueiro, abeto ou de rosas selvagens, reduções de sumo de pepino e uma interminável tarefa de descascar nozes da praia por mais de oito horas em dois dias ou até desidratar pepinos a 60º e virá-los a cada 20 minutos, tudo isto para pôr em prática o menu de 22 pratos que iria ser servido a partir da abertura da época dos vegetais.

No dia do primeiro serviço, o chamado “test dinner”, experimentaram-se os set-ups das estações: como funcionariam, a distribuição de tarefas e a organização de forma a que o serviço fosse o mais rápido, eficiente e perfeccionista possível. Sendo um jantar de teste poderia pensar-se que seria relaxado mas pela porta entrava Esben Holmoe Bang, chef do tri-estrelado Maaemo, e ainda fotógrafos, produtores e jornalistas. Apesar da sua relação próxima com o restaurante estes iriam em primeiríssima mão testar um menu que levou quase um ano a ser desenvolvido e que sem rede de segurança alguma, não servia uma grama de carne ou peixe, deixando a parte não vegetal para os gafanhotos, as formigas e os diversos fermentados com base em proteína animal.

A oleadíssima máquina que é o Noma nestas situações de risco, exposição e salto sem paraquedas, fez com que este jantar de teste corresse como se a equipa já o estivesse a fazer há meses, sendo que temos de ter em conta que os próprios chefes de partida só tiveram acesso às fichas técnicas nessa mesma semana.

Durante estas primeiras semanas muitos dos estagiários mais velhos foram colocados nas secções, rodaram entre as mesmas e tiveram um papel fundamental na transmissão de tarefas quando se foram embora. O início e o fim das épocas marcam também o início e o fim de estágio para a maior parte dos estagiários. Da minha parte, permaneci na zona onde todos passam cerca de um mês a mês e meio antes de passarem a ter mais responsabilidades e serem colocados nas secções e no serviço, a zona de produção, onde recebíamos os produtos, armazenávamos e realizávamos as tarefas maiores: selecionar ervas, plantas e flores para as diversas secções, escolher ervilhas por tamanho – e provar uma de cada vagem para assegurar os padrões de qualidade exigidos, além de fazer litro atrás de litro de sumo de pepino para reduzir e torná-lo num condimento cheio de sabor e umami.

Foi também durante este tempo que tive a oportunidade de, junto com uma colega tailandesa, fazer a comida do pessoal e tentar, mesmo que com algumas limitações, fazer uma caldeirada de bacalhau — fresco, visto que não existia o nosso belo bacalhau curado, e que diferença fez! — e ainda um ensopado de borrego que desapareceu num piscar de olhos, tanto que René Redzepi só conseguiu provar o molho. Foi uma semana de aprendizagem, sobretudo de partilha de receituário mais tradicional com a minha colega que nos presenteou com um caril verde, larb e um delicioso caril vermelho de fazer chorar, no verdadeiro significado da palavra, devido ao picante.

Mesmo com uma cozinha e armazenamento próprio, cozinhar para 130 pessoas três vezes ao dia torna-se uma tarefa extenuante e de difícil execução devido aos imprevistos – não chegar o fornecedor, enganos nos vegetais encomendados ou chegarem 50kg de vegetais de uma quinta experimental e ser obrigado a utilizá-los. Isto a juntar a todas as demais tarefas associadas à cozinha do pessoal, como a limpeza da respetiva área, copa fina e grossa e a exigência inerente a cozinhar para a equipa de um dos melhores restaurantes do mundo.

Durante esta semana pude conviver mais com René Redzepi, conhecê-lo melhor, conversar, partilhar experiências – entre elas o estágio de René no The French Laundry de Thomas Keller — fiquei a saber que levou a sua bicicleta até Yountville e que as pessoas o chamavam de louco devido ao acentuado declive das estradas na região. Pude, também, fazer perguntas que de outra forma não seria possível e descobrir que a sua mulher cresceu na cidade onde vivo em Portugal, Tavira, e que partilhamos o gosto pela mesma modalidade desportiva, o andebol.

Após viver dois meses em Copenhaga posso dizer que nunca estive numa capital europeia com o nível de tranquilidade, segurança e conforto que esta cidade transmite. É uma cidade com uma oferta gastronómica de nível altíssimo, muito por culpa do Noma e dos seus alumni. Existem turistas de todo o mundo a visitar Copenhaga apenas para comer. Há, até, um estudo de 2014 em que foi demonstrado que a principal causa para a aterragem de aviões particulares em Copenhaga eram jantares no Noma.