A primeira coisa: o interruptor da luz. Aquele gesto repetido vezes sem conta a que damos tão pouco sentido. Ilumina-se a cozinha, depois abrem-se as janelas e as portas. Deixa-se o ar entrar, deixa-se o espaço respirar. Olhamos em volta, respiramos, também, mas fundo. Daqueles momentos em que a força vem do ar que se respira. Reabrir as portas, a vida, o restaurar. Porque somos um restaurante, das coisas mais pequenas, dos detalhes. Deixar a vida entrar. Depois recuperamos conversas entre todos na equipa como se tivesse sido tudo ontem, como se não tivessem passado quatro meses e meio de silêncio e de ausência. “Ó chefe, já cortava o cabelo…” Eu nem reparo porque tenho os pensamentos a mil. As primeiras gargalhadas no meio da sala vazia ainda. “Vá, ajudem-me a descarregar as coisas do mercado”. E chegam os cheiros ausentes, a hortelã, o açafrão, as coisas que entram porta dentro como se fossem visita da casa que temos saudade. Arruma-se tudo. Nos lugares com os gestos que foram repetidos mais de mil vezes e só interrompidos por um tempo absurdo. Chego-me ao fogão e acendo o lume, é um gesto que me diz tudo. O tacho, a cebola, o alho, o louro, o javali, as ervas aromáticas quebradas entre os dedos e o aroma libertado que enche a cozinha de memórias, o vinho, o sal que arde nas mãos, os gestos agora com mais de mil cuidados e segurança. E o som, aquele crepitar a lembrar a lenha, aquele som que sabemos que se vai seguir de tantas outras coisas e começa uma dança, de cá para lá, de lá para cá. Primeiro em silêncio, depois em conversas do que foi e do que será. Prova, prova-se, dá-se a provar e refaz-se para melhorar. E o doce de ovos, é preciso fazer o doce de ovos. As coisas que faltam, sempre. Falta sempre alguma coisa. A vida é assim, na falta, luta-se, no inesperado, luta-se. Resistir é isso mesmo. E chega a hora, e entram os primeiros visitantes. Num restaurante há pessoas que visitam, passam para levar sabores e memórias, não são clientes, são visitas. Chegam, são acolhidos. Já quase me tinha esquecido como se fazia mas depois as mãos lembram-se que têm memória própria. E tudo recomeça. Só há uma diferença agora, imensa e enorme. Um dia de cada vez, vive-se um dia de cada vez. São menos as visitas mas não é menos a esperança nem a dedicação. São menos eles que chegam mas são a razão de nós lá continuarmos. Com isso, com o que deixam, pagamos os custos de continuar e de tudo o resto. E o resto está igual. Só queremos sobreviver, já não é viver, é sobreviver. Mas depois, aquele abraço vem em forma de palavras. “Obrigado por resistirem”. Enche-nos a alma. “Obrigado por resistirem”. É isso mesmo, é isso que faz sentido e que dá sentido, é isso que nos mantém a acreditar que será possível ainda mais um dia. Só mais um dia. E já será bom, tão bom…
*João D’Eça Lima é chefe de cozinha no restaurante Xisto, em Penela, Coimbra.