O estagiário português do restaurante de René Redzepi viveu a última edição do simpósio MAD, em Copenhaga, por dentro e por fora. Entre cozinha e apresentações, relata-nos aqui como foi a sua experiência.
Para a equipa do Noma, o MAD começou na segunda-feira que antecedeu o evento com uma reunião entre as equipas do restaurante e do simpósio para alinharem chefias, divisão de tarefas pelos responsáveis e darem a conhecer a toda a equipa o cronograma do evento – sempre sem divulgar os oradores – que começava todos os dias às 6h da manhã e acabava perto das 21h.
Esta foi uma reunião muito rápida em que René Redzepi e a Melina Shannon apresentaram os restantes membros da equipa do MAD e discursaram sobre o tema “Mind the Gap”, a necessidade de introspeção para a alteração de comportamentos, a chamada “cultura da cozinha” e tornar o “Restaurant Business” uma área atrativa e onde seja seguro trabalhar independentemente de género, raça ou religião.
No primeiro dia, tive a oportunidade de viver a experiência MAD enquanto participante e para além de ouvir a passagem de testemunho de René para a Melina Shannon pude assistir à apresentação de Jay Fai [a avó tailandesa que ganhou uma estrela Michelin para a sua banca de street food] que mesmo com um tradutor sem velocidade para a acompanhar, transmitiu humildade, gratidão, dedicação e energia a todos os que assistiam.
Enquanto fazia a sua famosa omelete de caranguejo – sendo que ela trouxe todo o equipamento e produtos porque não confia na qualidade de outros produtos ou fornecedores senão os dela – contou a história de ter recebido um Bibendum – boneco da Michelin – 15 dias antes de ser convidada para a gala da Michelin por parte da sua filha porque Jay Fai achava piada ao boneco. Contou-nos, também, um pouco sobre a sua ida à gala e ter reconhecido todos os outros chefes porque eram seus clientes habituais.
A Jay Fai seguiu-se uma apresentação sobre Atenção e Serviço onde foi transmitida a mensagem de que é necessário servir mais do que uma boa refeição, aproveitando o mediatismo e a exposição para servir também o “Mundo”. A manhã terminou com o projeto Drawdown em que o objetivo é reverter o aquecimento global até 2050: nesta apresentação memorizei o número de 80 Gigatons de CO2 que se podem reduzir apenas e somente com a redução do desperdício alimentar para níveis mínimos.
Nesta edição do MAD existiram uns pequenos workshops/breakout sessions, entre as palestras da manhã e o almoço. Entre as 15 existentes, escolhi ir com Matt Orlando, do Amass, até ao seu restaurante e conhecer o seu trabalho sobre “By products” e Desperdício Zero, onde procura utilizar os produtos ao máximo e equilibra a utilização dos resíduos orgânicos para produção de outros produtos e a utilização no jardim como “composto”.
Matt mostrou como usa a fermentação, desidratação e outras técnicas para fazer esse aproveitamento e ainda a sua planificação e a existência de 7 tipos de caixotes do lixo dentro do restaurante para os diversos tipos de “lixo”. Tentou ainda explicar como iniciou essas alterações no Amass e como foi importante educar e criar uma cultura nova dentro do seu próprio staff introduzindo uma alteração de cada vez dentro da rotina para que realmente funcionasse. Segundo ele, “o difícil não é reaproveitar, é criar uma cultura e educar as pessoas para o reaproveitamento e reutilização dos produtos”.
Depois de um agradável almoço proporcionado pela Jessica Coslow, do restaurante Sqirl, em Los Angeles, seguiram-se as apresentações da tarde onde a agora comediante Trish Nelson, que trabalhou durante 20 anos em serviço de mesas e bar, falou sobre a “cultura da cozinha”, e de bullying, prepotência, agressividade, abusos, sexismo, misoginia, assédio sexual, de como isso afeta cada um de nós e o porquê de dentro deste ramo se aceitarem todos esses comportamentos passivamente. Trish, note-se, foi uma das pessoas que denunciou ao New York Times os abusos que sofreu em diversos restaurantes. No final, acabou por sair do palco a chorar enquanto o público a ovacionava pela sua coragem.
O debate que se seguiu foi liderado pela galardoada jornalista Kim Severson, que liderou a equipa de reportagem que entrevistou Trish: o painel tinha como tema “#Metoo, e agora?” e abordou comportamentos — como alterá-los —, assédio sexual, e a importância das denúncias.
O segundo dia
No segundo dia do Simpósio fiz parte da equipa de cozinha que iniciou os seus trabalhos às 6h30 da manhã com um pequeno briefing, antes de começar a cortar queijos, pão e a preparar o buffet de pequeno-almoço. Apoiámos também Palisa Anderson e a sua equipa a empratar a sua salada de arroz que seria o prato quente do pequeno-almoço nesse dia. Entre o pequeno-almoço e o almoço houve tempo e espaço para assistir à apresentação de Dan Giusti – antigo Head Chef do Noma e agora criador do projeto Brigaid –, que falou sobre as dificuldades que encontra na implementação desse mesmo Brigaid, a dificuldade em chamar chefes para os refeitórios das escolas e em aplicar as diretrizes de 85 páginas que o Governo dos Estados Unidos obriga a serem cumpridas dentro dos refeitórios escolares com o orçamento de apenas um dólar por criança para quatro a cinco opções diferentes.
Após esta apresentação começou todo o rodopio, organização e o serviço de almoço que fora preparado pela equipa de Rosio Sanchez – antiga Chefe Pasteleira e I+D do Noma que agora chefia o restaurante Sanchez e as taquerias Hija de Sanchez em Copenhaga.
À tarde, aconteceu a apresentação de Clare Smyth, que contou a história do seu restaurante Core by Clare Smyth e toda a força e resiliência necessária devido às adversidades que sofreu durante os primeiros meses de atividade. Além de constantes acidentes e doenças que foram reduzindo e desgastando a sua equipa, houve um episódio que ficou na memória: uma péssima crítica gastronómica em que a jornalista não esteve no restaurante, mas sim o seu marido que no dia da abertura apareceu à porta, sem reserva, e sob o pretexto de que era vizinho, e estava apenas de passagem mas que gostava de provar alguns pratos, Clare aceitou servi-lo no bar mesmo tendo o restaurante totalmente lotado porque não queria fazer a desfeita. A sua epopeia de resiliência acabou por recompensar e foi reconhecida como a “2018 World’s Best Female Chef”.
Noutra apresentação, esta sobre “Identidade”, o orador Arthur Karuletwa, um sobrevivente do genocídio no Ruanda, explicou o seu percurso de vida, o seu “tesouro” quando recebeu o seu primeiro cartão com a sua identificação e o trabalho que procura desenvolver na Starbucks exatamente para mostrar a identidade e a origem de todos os seus cafés ao mundo.
No final do evento houve ainda uma after-party no local onde se realizou o Pop-Up “Noma: Under the bridge” seguida por uma after-after-party noutro local mais reservado em Osterbro que acabou com o chefe Ben Shewry do Restaurante Attica a mostrar todos os seus dotes como DJ.
“Este MAD vai mudar a história da nossa indústria e a mudança já começou. A futura MAD School potenciará chefias e cozinheiros para tarefas de liderança, gestão de recursos humanos e até gestão emocional. É tempo de trabalhar para esse futuro, um futuro onde sejamos todos felizes a trabalhar uns com os outros, sem bullyings, sem abusos, sem prepotências.” Esta foi uma das muitas frases de René Redzepi no briefing no Noma após o simpósio: o MAD descansará agora durante “uns anos” até que “volte a fazer sentido” e até que se erga a MAD School.