Talvez seja hora de recuperar o guisado, em todo o seu esplendor e dignidade. Ele merece uma ovação e merece deixar de ser considerado a receita provinciana reflexo de um Portugal “pobrezinho, mas honrado” estigmatizado por uma cultura política e social que nos temos esforçado por esquecer. 

Pensando bem, devíamos fazer uma homenagem ao guisado e pô-lo num pedestal. Porque não? Se foi ele que deu a festa quando o quotidiano era frugal e escasso de diversidade. Os dias eram marcados pela repetição sentida de couves, batatas, feijão e pão apenas adornados por uma peçazinha da salgadeira. O cheiro ao estrugido da cebola, alho, azeite, louro, salsa com a carne disponível onde o vinho dava o toque final anunciava sempre conduto melhorado. Era uma bênção, era uma festa. Ou a singela galinha que era riqueza dos pobres guardada apenas para momentos especiais. Ou uma peçazinha de caça como o coelho que acabava sempre acompanhado de um arroz ainda hoje lembrado com saudade. Ou, riqueza das riquezas, um cabritinho ou um borrego, privilégio de quem os tinha e se dava ao luxo de os sacrificar à abundância do momento penhorando o proveito da venda do leite, da lã ou das crias. Ou das fressuras que acabavam na panela sem vergonha e com muito sabor. Até o sangue era guisado acompanhado dos suspeitos do costume. Dia de guisado não acontecia todos os dias, mas quando cheirava na cozinha era porque havia razões para festejar, fosse ela o santinho ou a santinha padroeira da terra, a boda, o domingo, a Páscoa ou o Natal. 

Só por isso, porque deu festa, alívio a uma pobreza malvada, alento para os dias que escureciam cedo, o nosso guisado merecia uma homenagem nacional. Até os olhos brilham quando os mais velhos recordam os dias em que o guisado aparecia na mesa. Nem a pobreza mais desgraçada resistia ao encanto, à abundância deste guisado. 

Ao contrário do que se poderia pensar, não eram os assados os pratos dos dias de festa. Para além das casas ricas, quem era o pobre desgraçado que tinha um forno em casa para fazer um assado? O forno, aquele onde se cozia o pão e se podia fazer o assado, era comunitário e não estava disponível para todos. Pois, era com o lume que crescia e aquecia a casa que se faziam estes guisados que, só com o cheiro, alimentavam ao mesmo tempo que faziam crescer água na boca. Por isso, se usavam aquelas panelas de 3 pernas onde os ingredientes conviviam pacificamente até o gosto estar apurado. E incrível como este guisado “supria mais”, ora pois! Os sucos da carne a cozinhar lentamente amparados pela base de todos os refogados: o azeite, o alho, a cebola. E o louro, a salsa, ou o serpão, ou a segurelha ou a hortelã. Nada se desperdiçava nesta cozedura lenta, tudo ficava na panela e servia de base para o caldo que iria deixar guisar as batatas, o arroz ou a massa cuja quantidade logo dependia do tamanho da família. Por isso, o guisado “supria mais”, ainda que a carne não abundasse, o caldo do guisado, com todos os sucos apurados, daria sabor às muitas ou poucas batatas ou arroz.  

Era uma farturazinha controlada, que as famílias eram grandes e o conduto tinha de dar para todos. Mas claro que era o guisado! Que de outro modo, para além do cozido era possível conseguir aproveitar tudo o que a carne tinha para dar? Esta moda dos grelhados já vem num tempo em que a abundância alimentar permite desperdiçar os sucos que se esvaem nas brasas.  

Os sorrisos, o brilho nos olhos, a agitação das mãos e o avivar da memória das mães e das avós que “nunca deixavam passar os dias de festa sem aquele comerzinho melhorado” deixou-me com a certeza de que temos uma dívida para com o Guisado. E as Beiras sabem disso, a festa do povo beirão é no guisado que encontra o seu final feliz. Vamos celebrar o Guisado Beirão?