7h30 da manhã… Idanha-a-nova, uma neblina matinal irrompe pelos campos verdes que já estão matizados pelas acácias e aceres que caducos, têm as suas folhas a cair, o cheiro é inconfundível, terra molhada, um frio cortante que irrompe na nossa cara como uma espada de Démocles que pende sobre mim fazendo-me decidir se entro novamente em casa, ou se me aventuro para o campo.
Achei melhor sair. Sou inundado por um sentimento estranho, familiar e até incómodo. Continuei. As gramíneas estão no auge, prontas a ser consumidas pelas Vacas Velhas do Prado, procuro-as e num primeiro vislumbre vejo algo de estranho, uma figura altaneira, de pose imponente e ar bonacheirão. Reconheço-o, é o meu amigo Arlindo Cardosa. O Arlindo é um amante da natureza e quem produz a carne para as Areias do Seixo. Vejo-o a entrar num canavial que dá para o rio Ponsul. Sigo-o à distância, até que o encontro, sorri e manda-me baixar, fazer pouco barulho… inicialmente não percebo, mas estava a observar pássaros acompanhado da Lara, a sua cadela de estimação, companheira fiel e atrevida.
Tinha chegado no dia anterior, houvera pouco tempo para dissertarmos sobre pensamentos mais abstractos, tinha-me apenas deleitado com um magnífico bife do chouriço maturado com 30 dias e umas belas garrafas de vinhos regionais. Hoje era o dia, estava montado o cenário, o clima, o tempo, o som do Ponsul a correr taciturnamente com chilrar dos pintassilgos e tentilhões, eu fiz a pergunta, não esperava a resposta… Por que é que fazes isto?
Eu falava do método de produção do Arlindo. 1,5 cabeças de gado por hectare. Alimento? As gramíneas que crescem livres como os animais que nelas pastam. Conhece todos os bovinos que pastam na quinta, todos têm nome, mas o seu contacto com o Arlindo é mínimo. É espectador imparcial dos fenómenos naturais que ocorrem naquele espaço, vacas e touros de todas as espécies possíveis. O Arlindo dá dignidade aos animais que acolhe, dá-lhes um pasto verdejante, água natural e um prado património da UNESCO, a nossa Carne do Prado.
Estes animais têm a oportunidade de ter uma vida feliz continuada sem olhar exclusivamente para a esfera comercial. Era mais fácil produzir vitela de leite intensivamente, ou novilhos, mas esse não é o Arlindo, ele ama os seus animais. Eu quero crer que sempre que um é abatido, o Arlindo sente-o como uma perda inevitável: “só abatemos animais em final de vida, vacas ou touros velhos, que tiveram uma vida feliz no nosso prado, que sentiram a liberdade que todos deveriam sentir”, pessoas e animais.
Finalizado este processo com toda a humanidade, o Arlindo matura-nos as carcaças dos animais por 40 a 51 dias, o tempo para mim perfeito, para extrair as notas profundas oriundas de um processo de rancificação intramuscular onde as enzimas calpaínas e as catepsinas fazem a hidrolise do tecido muscular concentrando ainda mais os sabores. O Arlindo conhece este processo de trás para a frente e fá-lo melhor que qualquer Espanhol…
Do ponto de vista gustativo pouco mais posso dizer do que convidar a virem provar nas Areias do Seixo, disponível em exclusividade no nosso Menu de Degustação. Se é a carne mais tenra do mundo?! Não, e é bom que não seja, falamos de animais musculados que correm, brincam e são felizes, não são anafados sedentários atrás de uma grade ou secretária. É difícil descrever uma carne que de facto sabe ao que devia quando se tem por referência algo que nunca foi aquilo que parecia ser, ou seja, quero dizer, que a carne do Arlindo é mesmo carne, daquela que os nossos avós e bisavós comiam, vacas velhas…
Não esqueçamos que as vacas serviam para ajudar no campo ou dar leite, só em caso de doença ou final de vida se abatiam. O nosso legado gastronómico vem de um povo que tinha paciência, que usava os seus recursos até ao limite da finitude. Agora… quem espera 14 anos para matar um animal? Não é rentável, a rentabilidade cria-se, os modelos existem, os produtores estão dispostos a produzir, e nós? Estamos prontos a esperar? Para bem da preservação de um legado gastronómico e criação de produto sustentável?
Com todas estas questões na minha cabeça reconheci finalmente o sentimento que me inundara logo pela manhã: era a LIBERDADE!
* Tiago Santos é o chefe do restaurante do Hotel Rural Areias do Seixo, em Santa Cruz.
O autor não escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico.