2018 é o ano dela. Ou espera-se que seja. Constança Cordeiro, barmaid que conta com experiências profissionais em Londres, voltou recentemente a Portugal para aplicar os seus conhecimentos. Com um conceito inovador, abre em maio o bar A Toca da Raposa, em Lisboa. Antes disso, com a ajuda de colegas reconhecidos do meio, está a produzir ingredientes que mais tarde vai usar no seu espaço. O ETASTE acompanhou-a numa viagem ao Alentejo que contou com a presença dos britânicos Marcis Dzelzainis (Sager + Wilde) e Max Venning (Three Sheets). O resultado vai estar à vista mais tarde, quando enfim a silvestre raposa abrir a sua toca.
Já há alguns meses que Constança Cordeiro (ou Raposa Silvestre, como se autointitula), nos anunciava numa das suas primeiras entrevistas de recém-regressada, a ideia de trazer vários amigos e colegas de profissão a Portugal, para ajudá-la de alguma forma a dar ferramentas para a construção do seu bar. Estas colaborações, ou “co-labs”, como lhes chama, começaram em outubro e prosseguem até março. A ideia é que os convidados, a acompanhem ao longo de um dia, em duas das suas propriedades familiares, recheadas de ervas e frutas por colher, e produzam algo do zero. Seja “um destilado, um vermute, um fermentado ou uma infusão”, explica. O conceito não é novo. No Peg + Patriot, em Londres, já o aplicava. “85% dos ingredientes eram feitos por nós”. Porém, o certo é que ainda ninguém o colocou em prática por cá, talvez porque “dá trabalho. É preciso alguém com conhecimento técnico ou com experiência”. E já conhecendo Constança o suficiente, esperava-se que os seus convidados fossem tão ou mais entusiastas que esta. E a menina não joga por menos. Alex Kratena, Mónica Berg, Alan Sherwood e William Hetzel e até o português Fernão Gonçalves são alguns dos nomes que já cá pousaram. “São pessoas que eu respeito e que para mim, são os melhores na sua área”. Desta vez quem a acompanha é a dupla Marcis e Max, vindos diretamente de Londres. O primeiro soma experiências em bares como o Dandelyan e 69 Colebrooke Row e o segundo é proprietário do Three Sheets – juntamente com o irmão, Noel. Escusado dizer que os espaços mencionados estão na lista The World 50 Best Bars. “Eles são dois ‘geniozinhos’. Perto deles sinto-me uma migalha”, confidencia-nos Constança.
O caminho
But first things first. Am I right? Ainda quando a época natalícia pairava no horizonte, o dia começava bem cedo e igualmente fresco em Arraiolos, Évora. A primeira paragem tem um vasto campo à volta. Aquela paisagem desconhecida é familiar à bartender, que tinha por hábito passar fins de semana por lá, com os pais. Antes da jornada em busca dos produtos se iniciar, é tempo de meter uma coisa ou duas no estômago. Marcis e Max não sabem o que os espera. Ambos dizem pouco conhecer do que cresce por cá. Mal desconfiam que daqui a umas horas vão sair maravilhados com o vasto leque encontrado de produtos portugueses naqueles campos. Já no caminho, ao longo do trilho, as paragens junto a algumas árvores, ervas e plantas vão sendo sucessivas, e acompanhadas por Marta Mattioli, uma entendida no assunto, e que serve de mentora para os rapazes. “Que cheiro incrível!”, diz Marcis de tesoura na mão, colocando de seguida alguns exemplares de erva-cidreira no seu cesto de produtos dado por Constança logo no início da aventura. No futuro menu da Toca da Raposa, que será constituído por dez cocktails, vão estar bebidas feitas a partir destes ingredientes. E quando um produto “acabar, acaba mesmo” e entra um novo. Por este facto, vão existir sempre novidades constantes. “Vai acontecer ter coisas óbvias e familiares como bebidas que levem funcho, azeda, louro, bolota ou amora”, explica a bartender.
A presença dos colegas no processo é essencial para Constança sair da zona de conforto e perceber que afinal sabe pouco. E “não é cliché, não sei mesmo”, clarifica. Para a profissional de 27 anos, a parte mais importante destas visitas são as “conversas e a partilha”. A ideia é que as “co-labs” continuem mesmo depois do bar inaugurar. “Quero abrir o espetro a cozinheiros também”.
A aventura na floresta prossegue. É meio do dia, talvez umas 15h da tarde, e Marcis leva já o cesto cheio. Manjerona, Bolota e Falsa Camomila são alguns dos produtos colhidos que mais tarde vão resultar em sugestões líquidas. O cenário da parte da tarde é diferente. Estamos na segunda casa de Constança, não muito longe da primeira. Na verdade, “parece que estamos num castelo”, diz às tantas o bartender do Sager + Wilde. E é mesmo. O terreno à volta é grande, como o do primeiro, e há uma larga variedade de frutos. “Estou surpreendido com a quantidade de citrinos”, comenta Max. “É incrível que numa caminhada de algumas horas, recolhemos tantas coisas maravilhosas”.
Os testes
Após duas horas, o resultado está evidente em cima da mesa da cozinha. Primeiro a mise en place. Tudo para cima do mármore. As espirituosas disponíveis no chão. E também algumas experiências de Constança. Depois as ideias. A troca. Tudo para o papel para não esquecer. Às tantas, um dos rapazes chega-se à frente e pergunta “Acham que precisa de mais açúcar?”. Max responde, comentando para si: “Quero testar isto com vinho branco”. E entretanto o ambiente está mais gelado do que há bocado.
“And that’s a wrap”, anunciam os convidados. Pois que dali surgiram um Cordial (bebida não alcoólica doce) de tangerina, um brandy de bolota e uma tequila de manjerona. “Wow I like it”, aprova Constança, gargalhando de seguida. “Em pouco tempo conseguimos construir um bom lote. Imagino se estivessémos cá uma semana”, comenta Marcis aos presentes. Mais tarde, Max explica que complicar é muito fácil aquando da altura da criação de uma bebida. “Não precisas de colocar 1000 ingredientes num copo, se tiveres um muito bom e tirares partido disso. Hoje encontrei tantos aqui”, afirma. E é essa simplicidade que dizem ser a tendência num mundo que para eles não vive de tendências. Trabalhar com ingredientes locais é o único caminho possível para elevar a cena do bar, e uma solução para que cada país “se consiga evidenciar”. Para o barman do Three Sheets, Portugal está no caminho certo para ser um dos grandes, no futuro. Os “ingredientes certos, a tradição e a vasta gastronomia” são fatores que considera ser mais-valias. “O sucesso virá mais cedo do que imaginam. Vocês estão na melhor fase que é a do entusiasmo e da descoberta. Aproveitem”, assegura Marcis. O resultado desta colaboração com Constança é uma evidência que o mundo do bar mudou. “Hoje toda a gente se ajuda. As pessoas perceberam que ganham mais com isso. E isso é uma característica que vejo nos jovens bartenders”, completa. E se nesta profissão a aposta no conhecimento é vital, importante é também a personalidade. E a Constança isso não parece faltar. Mas mesmo o mais importante nisto tudo é a liberdade. A liberdade de ser e sentir. “E também a que dás aos outros!”.
O resultado e a Toca da Raposa

Foto: CA
O seu retorno a Portugal foi um caminho para a felicidade. O olhar de Constança Cordeiro já não é o mesmo de há uns meses. O conhecimento sobre a natureza e o que cresce à volta é diferente e reforçado. O medo, esse, tornou-se real. “Quanto mais conheces, mais noção tens que as pessoas não vão para um bar às 21h da noite”. E por falar nisso, “não tens medo que isto não resulte?”, pergunto. “Sim mas não tenho outra hipótese. Tenho que fazer aquilo em que acredito”. “Tens pretensões de abrir o melhor de Lisboa?” “Não. Quero ter o melhor bar para mim. Em que faça o melhor que posso fazer”. Ela, como tantos outros e outras, identifica-se meio como uma artista, que procura a sua verdade através de diferentes formas. Mas há fundo de verdade nesta mulher que parece saber bem o que quer. “Em Portugal não vais a um bar de propósito só para teres dois dedos de conversa com um bartender. Mas eu quero mudar isso. A melhor cena do mundo é sentires que tens um impacto em alguém”. Constança gosta de ver bares como o Red Frog ou o Cinco Lounge cheios de clientes, mesmo às segundas-feiras – aliás como naquele dia – e nega que esses espaços sejam sua concorrência direta. É que ela não quer estar sozinha. “Espero abrir caminho para outros”.
Daqui a uns meses abre A Toca da Raposa e aí logo se vê como a coisa vai andar. O nome sugestivo não é assim tão figurativo. A toca está lá. Mas os clientes não a veem concretamente. Já a Raposa será bem visível. Na forma da jovem barmaid. Dividido em dois espaços, o bar propriamente dito estará no meio de uma pedra “rústica”. É isso mesmo. A estação estará lá dentro com 15 lugares à volta. “Quero ter comunicação visual com os meus clientes”. Na mesma divisão, estão ainda mais vinte lugares. “ O espaço é muito raw, natural”, revela. A toca de que falámos na primeira linha deste parágrafo, serve de laboratório e de uma espécie de escritório, a que os clientes não terão acesso. Na linha que separa esses espaços vai estar uma instalação artística. A equipa de bar terá quatro pessoas, já a contar com a proprietária.
Como Max disse a dado ponto, esta é uma boa altura para estar na indústria. Porque uma coisa é certa: “as pessoas vão sempre beber”. E as raposas também. Nem que seja água. Ou um cocktail.