Quem desconhece, fica espantado. Desengane-se quem pensa que o Algarve é apenas praia e vida facilitada. No Baixo Guadiana, ali perto de Espanha, as localidades de Alcoutim, Castro Marim e Vila Real de Santo António vivem das gentes que lá trabalham e se esforçam para promover os produtos locais, longe das principais cidades da região. É um mundo desconhecido que o projeto ‘Choose Our Food’ quer dar a conhecer aos seus e aos outros. É um movimento pelo Algarve e pelos algarvios.

Passa pouco das 9h da manhã. Está frio mas o sol brilha. É o Algarve, onde os dias parecem não ter fim. É o Algarve. O meu, o nosso. A primeira paragem desta viagem por uma terra desconhecida por muitos é Cacela Velha. A ria Formosa preenche a paisagem. Por momentos, conseguimos observar o seu fundo. E imaginar o que lá vive. De volta à realidade. No horizonte, entre as casas de cor branca e azul e as açoteias despidas, num passeio semi deserto, espera-nos Jorge Minh’alma, produtor de ostras. Valter Matias, diretor da Associação Odiana, responsável pelo projeto ‘Choose Our Food’, que pretende maximizar os recursos naturais e produtos regionais do território do Baixo Guadiana, faz as apresentações e inicia a dinâmica do encontro. Começa por explicar que a ria sofreu drásticas alterações nos últimos anos e que isso tem vindo a afetar os negócios locais, como o de Jorge. “Eu tinha três viveiros, agora tenho um”. Hoje em dia, devido ao assoreamento, a maré baixa dura oito horas e não as habituais quatro, o que faz com que o marisco fique mais tempo descoberto e se alimente menos, explica-nos. A terra que era famosa pelas ostras continua a ser, só que o produto provado “pelos turistas no verão, nos restaurantes, vem na sua maioria de Espanha”. Das 300 ou 400 mil ostras de pequena dimensão, Jorge produz agora apenas 100 mil. Mas esta não é a única história afetada pelos problemas do clima. Numa visita à Foz de Odeleite, em Castro Marim, encontramos Augusto Gonçalves e o filho, Ricardo. Ambos pescadores. O primeiro por opção, o segundo por lazer. Chegam até ao pontão, num barco de pesca, cheio de algas. Trazem duas dezenas de peixe, entre eles o robalo. Gonçalo Costa, chefe de cozinha do lisboeta Tágide – que nos acompanha na viagem a par de Francisco Siopa, chefe pasteleiro do Hotel Penha Longa, em Sintra – avança e pega um. Tudo a sacar dos telemóveis. É peixe fresquinho ainda a saltar. “Olha estas guelras vermelhas!”, aponta Gonçalo. “E pensares que este peixe estava vivo ainda há pouco?”. Ricardo explica aos presentes que o produto apanhado será vendido numa lota em Vila Real de Santo António e que a maior parte dos seus compradores são espanhóis. “Amanhã este peixe pode já estar no outro lado”. O agente da GNR explica que a falta de chuva não ajuda à pesca. “A água faz falta em todo o lado”. De lembrar, que o rio Guadiana é composto por água doce e salgada, dependente das zonas, e por isso, é casa de várias espécies diferentes.

(E por falar em rio, a viagem prossegue a bordo de um barco, galgando a média velocidade o Guadiana. Em bom palavriado algarvio, a coisa já vai almareada para alguns. Olho o relógio. 14h. Mas eram 13h ainda há pouco. Mas como? “O telemóvel diz que estamos em Espanha”, diz uma voz lá ao fundo. E não é que estamos mesmo? Quer dizer, o rio pertence a ambos os países, e é certo que do outro lado se vê uma paisagem familiar mas desconhecida para a maioria, ainda que se seja algarvio).

Esta é uma altura em que muito se fala de produtos e produtores. Exemplos não faltam, como o do trabalho do chefe João Rodrigues no Feitoria através dos jantares Matéria (e a futura plataforma) ou o da barmaid Constança Cordeiro com os seus Co-Labs para A Toca da Raposa. A ‘Choose Our Food’, junto de entidades como a ‘Mesa, Cultura Gastronómica’, pretende criar essa “sinergia” mas com aqueles do sul. “Quando começamos em 2016, fizemos um mapeamento dos produtores e um levantamento das principais dificuldades”, explica Valter Matias. Após esse momento, a organização levou os produtores à Universidade do Algarve para uma visita a alguns laboratórios a fim de terem um “melhor entendimento da evolução dos seus produtos”. Iniciativas como estas pretendem, no fundo, mostrar à hotelaria do país um Algarve mais evidente e de qualidade. E parece que a coisa tem estado a dar frutos.

Presunto do Feito no Zambujal. Foto: Ricardo Bernardo

A ação prossegue. Depois do vento marafado a bordo do barco, é tempo de visitar a unidade de produção do Feito no Zambujal, onde pelas mãos de Rui Jerónimo, são criados porcos alentejanos, alimentados à base de cereais moídos, bolotas, e de vasto pasto verde. Mais tarde são transformados em enchidos, presuntos, papadas, torresmos, entre outros. Quem se dedica a essa tarefa são quatro senhoras da terra que naquele dia, dão lugar a quem queira meter a mão na massa… ou neste caso, na tripa. “Esta papada é digna de um restaurante daqueles top”, aprova Siopa que frisa que por vezes há que bater o pé e dizer “quero usar este produto na minha cozinha!” e insistir nessa ideia.

Enquanto acompanhamos a confeção dos enchidos, dentro da fábrica, Gonçalo é desafiado ali a preparar o almoço do dia seguinte: uns cabritos com batatas e legumes, assados no forno a lenha. Bem como, uns lombos de porco do Feito no Zambujal. Começa por cortar pedaços do animal, parecendo saber matematicamente as zonas indicadas dos cortes. As quatro senhoras a encher chouriços (literalmente) observam o tempero do chefe. “Podes abrir esse frasco, por favor?”, pergunta-me. “Sim, chefe”. Os temperos para cima dos cabritos continuam a surgir: tomilho, massa pimentão, alecrim, pimenta da Jamaica são alguns deles. Sem esquecer o alho. Do outro lado, olhares desconfiados. “Grande mistura”, diz às tantas uma das curiosas. Gonçalo ri-se enquanto acrescenta limão, ingrediente que não falta à mesa dos algarvios. “Já repararam que todos os vossos acompanhamentos têm limão ao lado?” O processo prossegue. “O que têm aí de vinho”, dirige-se a Manuel, irmão de Rui. “Temos um rosé nosso”. “Pode trazer”. E mais tinto. E coentros no fim. Ah e falta sal – produto forte na região. Já está. Até à hora de almoço do dia seguinte, vai ficar a marinar. Com as miudezas que sobraram do animal, “vou fazer um arroz, e juntar-lhe hortelã, amêndoa e figo. O que vos parece?”. Todos pareceram gostar da ideia. E amanhã a coisa (com)prova-se.

O Pão, o cabrito e o queijo

A viagem segue rumo a Castro Marim, mais precisamente para a Casa de Odeleite, um edifício que remonta ao século passado, como importante entreposto comercial dos produtos da terra. E a frase “a tradição já não é o que era” não se aplica aqui. Ali, duas vezes por semana, a D. Hortense ainda faz pão para vender no mercadinho que acontece aos fins de semana. Levanta-se às 3h da manhã e começa a amassar. “Este fermento foi feito ontem”, diz-nos enquanto vai alternando o amassar com água quente. Francisco Siopa junta-se a meio e ajuda no processo que dura cerca de meia hora. “Nem parece que é a primeira vez que amassa”, comenta esta senhora do pão, sem saber que se trata também ele de um perito nessa arte. A sala ri e D. Hortense também. Sem se dar conta, o processo acaba e de seguida a massa é coberta por panos a fim de “manter a temperatura”. Depois disso “fica 1h30 a levedar”. E o dia já vai a meio e ainda não há sinal de almoço.

A ação segue para a cozinha de Odeleite, de grandes dimensões. Por lá, os responsáveis de serviço começam a mise en place para o convívio que se segue. Como bom chefe, Gonçalo distribui tarefas enquanto verifica os temperos dos cabritos e dos lombos de porco. Para esta receita, conta que tentou “transformar o mínimo possível os produtos, para manterem o seu sabor”. “Podem cortar os legumes, por favor”. “Sim, chefe”. Segue uma travessa para o forno cheia de cenoura, nabo, pimento, entre outros. “Este nabo é fantástico”, comenta. Enquanto isso, a D. Hortense, longe da azáfama, está sentada à espera que o pão se faça. “Agora quanto tempo vai ficar aí dentro?” “Mais uma horinha”. Na cozinha, Siopa vai preparando a sobremesa da tarde: um pudim de laranja, ovos e leite de cabra. A completar no prato, vai estar o mel, o figo e a amêndoa – também eles produtos conhecidos da região. “O sabor destas laranjas é a prova de que tudo o que é biológico tem mais sabor”, remata.

A D. Hortense e os chefes trabalham na massa para o pão. Foto: Ricardo Bernardo

Já estamos instalados mas a visita aos produtores e seus produtos ainda não acabou. Falta conhecer uma exploração de cabras de raça algarvia, na localidade de Corte da Seda – cujos cabritos vamos comer daqui a nada. É a meia hora de casa, dizem. Ok, vamos. Chegamos e o Algarve que paira sempre na nossa cabeça, volta a não ser o que esperamos. Aliás toda esta viagem serve para provar isso mesmo. O desconhecido. Não há ninguém na rua. Mais tarde, Rita e Nuno Coelho dizem-nos que vivem ali apenas seis pessoas. É a moça quem nos recebe. O moço está junto ao rebanho de 100 cabras que possui. Ambos tinham trabalhos distintos na capital, ligados a área agrícola, na parte administrativa. “Conheço a realidade agrícola do país mas nunca tinha mexido na terra”, explica Nuno. Esta é uma raça ameaçada. Na região, há um total de 4000 fêmeas e 200 machos. O mais recente pastor comenta que é pena que não se trabalhe no melhoramento desta raça algarvia, pois esta fornece “leite de alta qualidade, com uma concentração grande de proteína e muito boa a nível de gordura”. Em breve conta que pretende abrir uma queijaria própria, onde vai vender também iogurte natural, além de queijo fresco e curado. O facto das cabras se alimentarem do pasto e de ervas como o funcho e o rosmaninho, confere ao queijo “um sabor diferente, e textura mais cremosa”. Em termos de consumo, no Algarve, não é hábito comer cabrito, além das épocas festivas, tornando-se “difícil por vezes escoar o produto”.

De volta à Casa de Odeleite, tudo já parece pronto para o almoço até então demorado. “Onde está o chefe?” Na cozinha, claro. Ele que venha, vamos começar. E diz-se que à mesa é que conhecemos genuinamente alguém. Ou se calhar não mas não deixa ter um fundo de verdade. Ora pensemos, quantos negócios ou festas de família têm o seu ponto mais alto à mesa? Ora no Algarve, não é exceção. E depois de brindes vários e largas horas de convívio, é hora de voltar à realidade. Mesmo antes da viagem de regresso a Lisboa, momentos antes do sol se pôr, ainda há tempo de olhar pela janela fora e ver a única amendoeira em flor do terreno. E por um segundo, parece ser primavera.

O cabrito assado no forno por Gonçalo Costa. Foto: Ricardo Bernardo